(Machado, por Toni d'Agostinho)
Uma piada meio boba que ouvi na adolescência falava de dois amigos que se reencontram depois de vinte anos de ausência. Trocam abraços, felizes da vida. Um deles diz: “Mas você está com ótimo aspecto! Saudável, bem disposto... O que aconteceu? Dieta, exercícios, o quê?!” O outro responde: “Nada disso. Apenas deixei de discutir por qualquer bobagem”. O primeiro diz, incrédulo: “Foi nada!” E ele: “Foi não”.
Esta é uma das minhas piadas formadoras, pequeno fragmento oral a que sempre recorri para consolidar um aspecto do meu caráter. Toda vez que alguém diz: “Ora, duvido que seja assim”, eu respondo: “Tudo bem, então não foi”.
Ora, quem diria, séculos depois reencontro minha piada, intacta e diferentíssima, nos parágrafos iniciais de “O Espelho” de Machado de Assis, que aqui reproduzo, para deleite dos “connoisseurs” e edificação dos pósteros:
“Havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinquenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição espiritual e eterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, contestou-lha um dos presentes, e desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era capaz. Jacobina (assim se chamava ele) refletiu um instante e respondeu: -- Pensando bem, talvez o senhor tenha razão.”
Grande Machado! Eis aqui um parágrafo com o peso de várias Bíblias. Há toda uma Ética, muito de uma Estética e pinceladas de uma Cosmogonia neste pequenino trecho. Nunca li uma biografia do autor de Dom Casmurro, mas a imagem que tenho dele bate em muitos aspectos com a do seu meditativo Jacobina.
Sabemos que muita gente meteu-se a polemizar com Machado, sem sucesso algum. O principal talvez tenha sido o grande Sílvio Romero, que através da imprensa alfinetava, provocava, cutucava, soltava cascavéis e calangos no caminho do nobre romancista. Este desviava-se dos répteis e seguia em frente, sem dar-lhe o braço a torcer.
A recusa de um intelectual de peso à discussão com um polemista profissional equivale, no mundo das idéias, ao que no mundo dos amores figura como a resistência de uma mulher belíssima à corte de um sedutor. O sedutor, habituado a ver vítimas tombando aos seus encantos, manda-lhe dezenas de iscas, e a beldade não morde nenhuma delas.
A recusa de um intelectual de peso à discussão com um polemista profissional equivale, no mundo das idéias, ao que no mundo dos amores figura como a resistência de uma mulher belíssima à corte de um sedutor. O sedutor, habituado a ver vítimas tombando aos seus encantos, manda-lhe dezenas de iscas, e a beldade não morde nenhuma delas.
Sílvio Romero puxava Machado pela mão: “Vem, vamos ali naquele recanto escuro”, e Machado dizia: “Não, fiquemos aqui, à vista de todos”. A analogia é fraca, porque a polêmica só tem brilho justamente sob luzes e atenções; mas o leitor há de captar o sentido.
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