sábado, 30 de janeiro de 2010

1590) O Transleitor (17.4.2008)




O romance The Translator(Nova York, Morrow, 2002), de John Crowley, é a história da convivência de Innokenti Falin, um poeta russo, com sua tradutora norte-americana, em 1962, antes, durante e depois da crise dos mísseis cubanos. Como tudo que Crowley escreve, é várias coisas ao mesmo tempo: uma delicada história de amor, discussão sobre a natureza da poesia e da literatura, estudo da dificuldade de comunicação entre as pessoas, retrato de época. Crowley escreveu ficção científica (Engine Summer, The Deep, Great Work of Time), e o livro tem algo do gênero, ao sugerir a existência de universos paralelos nos quais certos fatos históricos cruciais acontecem de maneira diferente. Crowley também é mestre da fantasia: Little, Big (ganhador do World Fantasy Award) lida com elfos, e o presente livro lida (de maneira indireta, simbólica) com anjos.

Nas últimas décadas Crowley dedicou-se a uma tetralogia de romances explorando a magia renascentista, livros ambientados na época atual e também no tempo do Dr. John Dee, o mago e alquimista que assessorava a Rainha da Inglaterra. Esses romances (Aegypt, 1987; Love & Sleep, 1994; Daemonomania, 2000; Endless Things, 2007) contam uma espécie de história secreta da História, fatos que talvez tenham acontecido sem que ficássemos sabendo. E The Translator tem algo disto.

À primeira vista o livro se intitularia “O Tradutor”, mas a protagonista é Kit Malone, então a tradução correta é “A Tradutora”. Em inglês, “translator” pronuncia-se “trans-LÊI-tor”, e não posso resistir a um trocadilho dado pronto, de bandeja. Um tradutor é um trans-leitor, um leitor que lê transversalmente um texto, procurando não uma correspondência mecânica entre palavras que só se assemelham na superfície, mas a reconstituição do maior número possível das muitas camadas de significação do poema. No livro, cabe a Kit, que mal começou a estudar russo, acompanhar o poeta estrangeiro em sua busca pela palavra inglesa adequada para transmitir nuances de significado que talvez só existam no original.

Quando Kit lhe mostra uma tradução e se refere ao “seu poema”, Falin lhe diz: “Não. Esse é o seu poema. O meu foi escrito em russo”. O que um tradutor faz é escrever – no seu próprio idioma, com seus próprios recursos, seu talento – um texto que seja isomórfico com um texto pré-existente, criado por outra pessoa em outra língua. Não é o mesmo texto. Nunca vai ser. Eu, por exemplo, sou fã de Brecht e de Maiakóvski sem nunca ter lido um só poema deles, porque não sei uma palavra nem de alemão nem de russo. Li traduções em português, inglês, espanhol. Comparando umas às outras, comparando o sentido das frases, o vocabulário, o “tom de voz”, o modo com os versos se quebram e se organizam, fico com uma idéia aproximada do que devem ser os poemas desses autores. Nunca os conhecerei – a menos, claro, que aprenda as duas línguas. Um poema estrangeiro é a foto de um relâmpago – em Braille.

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