Um dos quadros mais famosos de Francisco de Goya, sobre cujas gravuras falei recentemente nesta coluna, é aquele em que ele retratou a família do rei Carlos IV da Espanha. Foi uma dessas obras encomendadas que provocam em muitos artistas emoções contraditórias de júbilo e terror. Júbilo porque retratar a família real significa receber dinheiro, honrarias, pensões para familiares carentes, talvez um título de nobreza ou um salário vitalício – para não falar na fama. Terror porque os reis, como os doidos, são imprevisíveis. Tem muito caso por aí de rei que não gostou do retrato e mandou enforcar o retratista.
Vai daí que Goya pode se benzer e acender velas aos céus, porque se alguém retratasse minha família com a mesma sem-cerimônia com que ele retratou a do rei Carlos IV, meu amigo, era um caso para cadafalso em 48 horas. O quadro está no Museu do Prado mas versões digitalizadas podem ser encontradas na Web, como esta aqui: http://tinypic.com/1o1zxd. Os críticos consideram que ele fez um retrato devastador da família real. Fred Licht considera o quadro “uma obra única em sua descrição drástica da bancarrota humana”. Téophile Gautier assim o descreveu: “O padeiro da esquina e sua mulher, depois de ganharem na loteria”. H. W. e Anthony Janson dizem: “Eles parecem uma coleção de fantasmas: as crianças amedrontadas, a imagem embrutecida e balofa do rei, e num golpe de mestre de humor e sarcasmo, a rainha de uma vulgaridade grotesca. (...) Como, é o que nos perguntamos atualmente, a família real tolerou tal coisa? Estariam tão deslumbrados com a pintura esplêndida de seus trajes que não perceberam o que Goya havia feito com eles?”
Parece que não perceberam nada, pois a história registra que ficaram todos muito satisfeitos com o quadro. Principalmente a rainha, um tribufu horroroso, mas à qual o pintor sabiamente conferiu a posição central e mais iluminada da imagem, ressaltando o fato de que quem mandava no reino era mesmo ela. A sensação que nos produzem é a de pessoas vulgares, grosseiras, sem refinamento, o tipo de gente que não compreende uma ironia e que – como todos os ditadores e absolutistas – em caso de dúvida manda queimar tudo e prender todo mundo, porque não sabe distinguir o que é ironia e o que não é.
O quadro tem outros detalhes deliciosos, entre eles o fato de que a mulher do príncipe está de frente mas com o rosto virado para trás. No blog do espanhol “Rothko” (http://www.espacioblog.com/rothko/post/2006/04/16/la-familia-carlos-iv) encontro a informação de que na época ainda não se sabia a identidade da princesa, por isto seu rosto não aparece. E por trás do casal vê-se na penumbra a imagem de um homem de seus cinqüenta anos, meio de lado, como quem está prestes a se ocultar atrás de um enorme cavalete de pintura. É o próprio Goya, numa aparição hitchcockiana, incluindo-se no quadro, mas numa atitude de “não tenho nada a ver com essa turma”.
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