sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

1413) A rima em ão (23.9.2007)


(Manuel Bandeira)

Escrevi dias atrás, que a rima em “ão” só deve ser utilizada em casos extremos. Um dos muitos critérios pelos quais medimos a qualidade poética de um texto é sua dificuldade de execução. Um poeta, como qualquer outro artista, é um cara que cria problemas para si próprio, e os resolve, quase que num único gesto. Pintar um quadro, tocar uma música, contar uma história, tudo isto envolve problemas de “o que fazer” e de “como fazer”. Muitos destes problemas preexistem à obra, mas alguns são criados pelo próprio autor: “Vou escrever um romance sobre jagunços em que só no final fica-se sabendo que um deles é uma mulher”.

Quando um artista escolhe invariavelmente o caminho mais fácil, menos problemático, mais comodista, sentimos um desprezozinho por ele e pela obra. Temos a sensação de que lhe faltaram ousadia, coragem, capacidade técnica; enfim, faltou-lhe talento. “Talento” pode ser descrito como uma fração ordinária onde o denominador são os problemas a resolver e o numerador as soluções que o artista encontra.

A rima em “ão” é uma das mais freqüentes e mais banais da língua portuguesa, e talvez só seja superada pelas rimas dos verbos no infinitivo (andar, beber, sorrir, compor) ou por sufixos de uso constante (-dade, -mente, etc.). Isto ocorre porque esse som, “ão”, que só existe no português, é um som no qual desagüam palavras com várias terminações diferentes. Do espanhol, por exemplo, vêm as palavras terminados em “ano” (hermano/irmão), “ón” (león/leão), “án” (alemán/alemão), etc.

O fato é que “ão” é uma peculiaridade de nossa língua, mas uma peculiaridade abundante. A rima em “ão” é vista pelos artesãos mais sutis como uma rima primitiva, banal, rima invariavelmente pobre e que denota um poeta de poucos recursos. Há um poema muito curioso de Manuel Bandeira, “Cantadores do Nordeste”, em que ele diz: “Anteontem, minha gente / fui juiz numa função / de violeiros do Nordeste / cantando em competição. / Vi cantar Dimas Batista / e Otacílio, seu irmão...” E por aí vai. São 38 linhas, e dezenove delas (as linhas pares) rimam em “ão”.

Ora, Manuel Bandeira foi talvez o poeta brasileiro mais consciente das sutilezas métricas e sonoras de nossa língua (leiam Itinerário de Pasárgada, e tirem-lhe o chapéu). Ao tentar reproduzir as cadências e sonoridades da poesia dos cantadores, ele adotou um tom artificialmente primitivo e num certo sentido preconceituoso, como se achasse que repentistas só usam rimas pobres. Posso estar sendo injusto com Manuel, que afinal estava apenas produzindo um poemazinho casual, verso de circunstância; mas a impressão que me dá seu “samba de uma rima só” é de que ele via o “ão” como um sinônimo de primitivismo.

Nos tempos da revista Garatuja, o poeta Antonio Cardoso tinha um texto onde falava de um padre estrangeiro que se encantava com o “ão” e o “inho”, sons que só existem no português. São sons raríssimos, e belos. Não devemos desvalorizá-los pelo excesso de uso.

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