Desde que assisti Verdades e Mentiras de Orson Welles (“F for Fake”), há quase trinta anos, passei a encarar de maneira diferente o falsificador de obras de arte. Ele difere do mero plagiário (que tenta fazer passar como sua a obra de alguém) ou o copista (que reproduz um quadro alheio e tenta vendê-lo como original). Naquele filme, Welles nos apresentava Elmyr de Hory, um sujeito capaz de pintar um Modigliani inexistente tão bem quanto Modigliani o teria feito. Isto é crime? É arte? É metacrítica? Cartas para a redação.
A fraude literária é um capítulo desse fascinante romance. Ela ocorre quando alguém inventa um autor inexistente, escreve obras e as divulga, atribuindo-as ao “fantasma”. Um caso famoso ocorreu na Austrália em 1943, em torno do escritor imaginário Ern Malley. Um belo dia, o editor da revista literária “Angry Penguins” recebeu alguns poemas enviados por uma leitora. Os poemas, meio vanguardistas, tinham sido escritos pelo irmão dela, falecido aos 25 anos. Max Harris, o editor, adorou os poemas e fez com eles uma edição especial da revista. Acabou sendo processado e preso porque alguns poemas tinham conteúdo obsceno. Mas o pior foi quando descobriu que “Ern Malley”, o falecido poeta, não existia, bem como sua “irmã”. Tudo era uma fraude concebida por dois desafetos literários seus, James McAuley e Harold Stewart.
Li uma resenha do livro (The Ern Malley Affair, de Michael Heyward) em que o episódio é reconstituído. É uma história de fofocas e picuinhas, típica da feira de vaidades que cerca a Poesia, país onde não circula dinheiro e onde a única moeda é o prestígio. Ou talvez fosse melhor dizer que a Poesia é um país onde não há dinheiro e cada poema é um cheque, que vale pela assinatura de quem o oferece. Cabe ao interlocutor decidir, pela assinatura, se o cara tem saldo na conta ou não.
Alguns episódios colaterais do caso são instrutivos. Numa universidade um professor de literatura colocou, lado a lado, um poema de “Ern Malley” e um do respeitado poeta inglês Geoffrey Hill, perguntando qual dos dois era a fraude. Deu meio a meio. Outro aspecto interessante destacado na resenha é que o livro de Hayward traz longos relatos das discussões, no tribunal, em que respeitáveis juristas analisavam os poemas de “Ern Malley” para que a Corte decidisse se eram obscenos ou não, e se eram autênticos ou não. Segundo o resenhador, “é uma redução-ao-absurdo da desconstrução literária”. Fiquei com vontade de encomendar o livro só para ler esta parte.
Quem decide se um verso é Poesia ou não? Se um verso de alguém é atribuído a outra pessoa isto pode torná-lo melhor, ou pior? Qual é a diferença entre uma fraude e um heterônimo? Um verso medíocre pode ser lido diferentemente, se descobrirmos que foi Drummond quem o escreveu? O monólogo de Hamlet torna-se literariamente inferior quando descobrimos que quem o escreveu foi um tal de Shakespeare? Cartas para a redação.
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