John Le Carré é conhecido como um autor de romances de espionagem, mas uma descrição mais adequada do seu gênero talvez fosse “romance de crime transgeográfico”. Nem todo livro de Le Carré usa espiões, mas a grande maioria deles tem protagonistas que são políticos, diplomatas, jornalistas, militares; profissões que os levam a ter uma vida disseminada por diferentes países ou mesmo diferentes continentes. É uma literatura de mistério e ação que se vale do conhecimento do autor sobre o funcionamento da economia e da política internacional, não apenas no lado que aparece na TV e nas manchetes de jornal, mas nos seus bastidores, nas histórias que não são reveladas, nas “reportagens que não foram escritas”.
O Jardineiro Fiel é o título que se refere de forma irônica a um diplomata britânico mais preocupado com as flores do seu jardim do que com o trabalho de sua esposa, uma jovem ativista cuja luta contra as megacorporações ele acompanha distraído, sem se envolver, sem entender, sem fazer muitas perguntas. Os dois vão morar na África, onde ela entra numa luta contra os grandes laboratórios farmacêuticos que estão fazendo experiências ilegais (e cruelmente insensíveis) com a população local. O assassinato dela (nas primeiras cenas do filme) o joga numa investigação frenética onde ele procura, talvez pela primeira vez, entender a sério quem era aquela mulher com quem se casou.
Em O Paciente Inglês Ralph Fiennes havia interpretado um homem que empreende uma jornada suicida através do deserto para tentar (em vão) salvar a vida da mulher que ama; aqui, a amada morre igualmente num deserto e a jornada é para decifrar o mistério dessa morte. Durante a vida dela, o marido pensa o tempo inteiro estar sendo traído, mas, como nunca tem plena certeza, prefere varrer as dúvidas para baixo do tapete. Como em toda boa história de mistério, a solução, à medida que aparece, nos obriga a reler e reinterpretar, no contexto das novas revelações, fatos que tínhamos lido de forma equivocada.
O Jardineiro Fiel comporia um ótimo programa duplo com o documentário The Corporation (que comentei em 1 de julho). Ambos têm como tema a atividade cegamente predatória das grandes corporações em busca de mais e mais lucros, não recuando diante do suborno, do homicídio e até do genocídio de populações. O documentário canadense faz um raio-X da “selva selvagem” que é o Mercado Internacional do Lucro, e o filme de Fernando Meirelles ilustra sua tese como um caso exemplar onde a indústria farmacêutica européia usa populações africanas como cobaias nos testes de um remédio que precisa entrar no mercado a tempo de lucrar com uma epidemia já prevista.
A cena final é arrepiante e memorável, porque sabemos o que espera o protagonista, vemos que ele não apenas não recua diante do seu destino, como o procura voluntariamente. O diretor evita mostrar o que outros optariam por descrever em cenas de violência explícita.
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