terça-feira, 6 de janeiro de 2009

0723) A primeira leitura (13.7.2005)



Tempos atrás vi uma entrevista de Harrison Ford no programa “Inside the Actor’s Studio”, no Canal GNT da Globosat, um interessante programa onde atores são entrevistados no palco, diante de uma platéia de estudantes de direção e interpretação. A certa altura alguém lhe perguntou como fazia quando se via diante de um impasse, ou quando “perdia de vista o personagem”, esses problemas típicos dos atores. Ford respondeu que nessas horas procurava lembrar quais tinham sido suas emoções durante a primeira leitura do roteiro, e retornava a elas como um ponto de partida para recomeçar todo o processo. Por isto, dizia ele, a primeira leitura tinha que ser uma leitura concentrada, intensa, porque destas suas reações iniciais à história escrita poderia depender muita coisa futura do seu trabalho.

Numa entrevista publicada no “Suplemento Cultural” deste jornal (22 de maio) diz Stanley Kubrick, quando perguntado sobre o seu hábito de adaptar obras literárias: “Há uma grande vantagem em se basear em material literário, é que você tem a oportunidade de ler a história pela primeira vez. (...) A vantagem de uma história que você pode realmente ler é que você pode lembrar o que sentiu quando a leu pela primeira vez; e isso funciona como um julgamento ao tomar decisões que você tem que tomar ao dirigir um filme, porque mesmo com uma história de outro escritor você se torna tão íntimo dela depois de certo tempo que você não sabe realmente como ela vai ser vista por alguém que veja o filme pela primeira vez. Então pelo menos você tem aquela primeira impressão da história e suas primeiras idéias, que são muito importantes”.

São visões muito parecidas, de dois sujeitos que, ao que eu saiba, nunca trabalharam juntos. (Há um episódio menor, mas curioso, envolvendo os dois: quando Kubrick dirigiu Eyes Wide Shut, o roteirista Frederick Raphael colocou o nome “Hasford” no personagem vivido por Tom Cruise porque Kubrick insistia em que ele devia “parecer um sujeito comum, tipo Harrison Ford”). Ambos, no entanto, mostram uma percepção clara de um aspecto importante da nossa experiência com a Narrativa, a Ficção, a história contada. No momento em que começamos a ouvir (ler, ver) uma narrativa estamos diante de algo que desconhecemos, que não sabemos como vai terminar. Estamos diante de uma situação em que, como na vida real, tudo pode acontecer. Tudo é possível (dentro, é claro, da moldura-de-plausibilidade de cada gênero literário); em termos da narrativa em si, dos acontecimentos, tudo é novo e inédito. E nossa reação a isto é também uma reação espontânea, franca, real.

Numa segunda leitura, o infinito de possibilidades fechou-se numa única versão. Mas ser capaz de lembrar nossa primeira reação é tornar presente em nós a reação do quem estará no futuro vendo aquela história pela primeira vez. Como nós vemos a vida: interessados em cada novo episódio que surge, e sempre sem saber como vai terminar.

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