terça-feira, 6 de janeiro de 2009

0720) Os dois Mazzaropis (9.7.2005)



Alguém por aí talvez se lembre de Mazzaropi. Foi o nosso caipira mais famoso, juntamente com o Jeca Tatu inventado por Monteiro Lobato. Com seu chapéu de palha de abas desfiadas, camisa quadriculada, calças puxadas para cima e “meia coronha” (curtas demais) embaixo, era o protótipo do caipira bobo, sentimental e eventualmente esperto: um Didi Mocó paulista que reinou nas décadas de 1960-70. Por trás desse personagem refugiavam-se um ator e diretor de não muitos recursos, e um produtor inteligente que fez da PAM Filmes (Produções Amácio Mazzaropi) a detentora de alguns dos maiores sucessos de bilheteria do cinema brasileiro. Mazzaropi era a prova viva de que as raízes rurais do nosso povo são fortíssimas; isto fez com que fosse amado e odiado. Cada filme seu era um arrasa-quarteirão em matéria de bilheteria, e era ritualmente esquartejado pelos críticos de cinema, inclusive o locutor que vos fala.

O outro Mazzaropi foi batizado em alusão ao primeiro. Acho que ninguém mais se lembra dele, fora eu; talvez já esteja morto e enterrado. Era um vendedor de picolés que estava sempre no Estadual da Prata ou no Presidente Vargas. Parecia um pouco com o Mazzaropi paulista: a mesma cabeça chata, a testa larga, o queixo fino, o bigode, sempre sorridente e com olhos tristes, sempre brincalhão, mesmo quando “levava um xêxo”, o que não era raro no tumulto das arquibancadas por onde ele circulava durante os jogos.

Por que lembro dele? Porque Mazzaropi me lembra um cara a quem chamei “o falso Pasolini”. Por volta de 1968 eu peguei o ônibus na lateral do Colégio das Damas para ir ver um jogo do Treze quando olhei para um banco ao lado... e lá estava Pier Paolo Pasolini! Ele mesmo, o diretor do Evangelho Segundo São Mateus! O mesmo rosto vincado, de rugas fundas, um tanto escaveirado. Vestia uma roupa humilde, remendada, e acho que levava uma marmita no colo. Claro, não era Pasolini: mas era um clone, um sósia perfeito.

Daí me surgiu uma teoria maluca que tenho até hoje: Deus, ou a Natureza, ou o Acaso, produz dezenas de “clones” idênticos e os joga no mundo, na esperança de que pelo menos um deles dê certo. Uns viram cineastas, outros viram picolezeiros ou operários. Na época eu considerava isto como uma prova de sucesso ou fracasso. Sucesso para mim era dirigir Teorema, fracasso era comer de marmita. Hoje continuo achando o mesmo, mas com menos veemência. A toda hora cruza por mim na rua um sósia de algum figurão internacional. São sete horas da noite e o cara pega o mesmo ônibus que eu, voltando para casa com a pasta e o embrulho de pão embaixo do braço, um ar cansado, ausente e tranqüilo. Vai ver que tem uma mulher carinhosa à sua espera, crianças alegres, um prato de sopa quente, o Jornal Nacional, o futebol, uma noite de sono profundo. Ele nunca notou que é a cara do presidente da Fifa ou do primeiro-ministro da França, e se notasse talvez desse de ombros e murmurasse: “Pois ele que faça bom proveito”.


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