(Brueghel, Jogos)
Na universidade, ao meter a cara nos livros de Antropologia (não, nunca concluí o curso, tinha que estudar muita coisa desnecessária) eu costumava ficar pensando: “Quem produz a Cultura Popular?” É um pouco como perguntar: “Quem escreve as anedotas?” Porque todas aquelas coisas engraçadas têm decerto uma origem, um criador, seja uma pessoa ou um grupo. E hoje, olhando em retrospecto minha infância, eu lembro de coisas que para mim são “cultura popular” mas que nunca vi consignada nos respectivos compêndios.
Uma brincadeira divertida se fazia lá em casa, quando eu tinha 7 ou 8 anos. A gente desafiava uma pessoa a demonstrar seu equilíbrio de olhos fechados. O desafio era colocar uma fila de garrafas, a cerca de meio metro uma da outra, vendar os olhos do sujeito, e pedir que ele caminhasse por sobre a fila, pisando entre as garrafas, fazendo o percurso de ida e volta sem derrubar nenhuma. Vendava-se bem os olhos da vítima, e lá vinha ele. O engraçado era que enquanto os olhos dele estavam sendo vendados e as instruções repetidas, as crianças vinham e recolhiam as garrafas, sem fazer barulho. E lá se ia o coitado, erguendo a perna com todo cuidado, todo satisfeito, crente que estava ganhando a aposta, fazendo aquele balé abestalhado por cima do chão vazio.
Outra brincadeira era a que chamávamos “Disparate”. Quatro pessoas, com papel e lápis. “A” e “B” faziam listas de nomes: pessoas reais, vultos da História, personagens de filmes... “C” fazia uma lista de ações (“tomando banho” – “pulando frevo”...) e “D” uma lista de lugares (“no castelo de Drácula” – “no meio do mato”...). Quando todos tinham a lista pronta, com o mesmo número de itens (10, 15, por aí), liam-se as listas pela ordem, e as cenas formadas eram engraçadíssimas. “Mamãe” – “com Luiz Gonzaga” – “jogando xadrez” – “nas costas dum macaco”... “Juscelino” – “com Tia Adiza” – “catando piolhos” – “no Arco do Triunfo”... E por aí vai.
Depois reencontrei a brincadeira dos “Disparates” entre os numerosos jogos surrealistas que os discípulos de André Breton praticavam com a maior devoção (os Surrealistas sempre me seduziram pelo seu imenso senso de humor). Em seu informativo The Oxford Guide to Word Games, Tony Augarde menciona o jogo chamado “Consequences”, muito em voga na Inglaterra entre 1600-1800, que é uma versão mais complexa dos nossos “Disparates”.
Mas, não sei se por falta de sorte ou desatenção, nunca encontrei em nenhum autor (Câmara Cascudo, Sílvio Romero, Alceu Maynard, Leonardo Mota, Amadeu Amaral...) qualquer referência à brincadeira de “enguiçar garrafas” que tanto alegrava nossas noites na ampla cozinha de nossa casa na Rua Miguel Couto. Sempre que alguém me fala em Cultura Popular, penso nessas coisas. Cultura Popular é tudo aquilo que aprendemos com as pessoas que nos são mais próximas, e que pensamos ser um segredo precioso que só nós sabemos, um pequeno tesouro que somente nós guardamos.
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