São afirmativas tão idiossincráticas, tão pessoais, que me lembram aquela história do cara que achou numa floresta a lâmpada mágica, e quando o gênio lhe concedeu três desejos ele gritou: “Tire esse espinho do meu pé, tire esse espinho do meu pé, tire esse espinho do meu pé!”
Quando a gente está muito concentrado num problema, não consegue pensar em outra coisa.
Um problema filosófico que me assalta sempre é: existe Destino? As coisas “já estão escritas” de alguma forma? Me vêm à mente duas cenas do filme Lawrence da Arábia, que não revejo há muitos anos, portanto se eu falsear algum detalhe me perdoem.
Lawrence está cruzando o deserto à frente de seu exército. Todos estão alquebrados, morrendo de sede, arriados sobre os cavalos. A certa altura ele olha em torno e não avista um dos árabes. Digamos que se chama Ahmed. “Cadê Ahmed?”, todos começam a perguntar. E avistam, lá atrás, o cavalo de Ahmed sem cavaleiro. “Vou voltar para buscá-lo,” diz Lawrence. Os árabes protestam. Não adianta; já ficou muito para trás; àquela altura, já terá morrido. “Estava escrito que Ahmed ia morrer!” gritam eles.
Lawrence não conta conversa, dá meia-volta no cavalo, mete as esporas, e volta. Passam-se horas, ou dias, não sei. E de repente eles avistam, ao longe, um cavalo que se aproxima, com dois cavaleiros: Lawrence, com Ahmed, vivo, na garupa. Os dois estão cobertos de terra, no limite da exaustão, mas ao cair no chão Lawrence ainda tem forças para dizer: “Nada está escrito.”
Só esta cena bastaria para fazer a fama de David Lean como diretor, um dos poucos que conseguem usar a vastidão do Cinemascope para valorizar os indivíduos, e não as meras multidões.
Mas, mais adiante no filme, ocorre outra cena crucial. Às vésperas da batalha decisiva contra os turcos, quando é preciso um máximo de concentração para a luta, Lawrence fica sabendo que em alguma parte do acampamento está havendo um bafafá entre duas das tribos que compõem seu exército. Ele vai lá resolver o problema, e fica sabendo que um sujeito de uma tribo matou um membro da outra, e que estes querem vingança.
Lawrence diz: “Se eu executar o assassino, vocês fazem as pazes, e combatem juntos?” Todos dizem que sim. Lawrence puxa o revólver, e manda que o criminoso seja trazido. Quando vê seu rosto, empalidece. Adivinhem quem é? Ahmed, o mesmo que ele havia salvo.
O problema filosófico, aí, é: 1) matar Ahmed, e confirmar a teoria de que a morte deste “estava escrita”; 2) perdoar Ahmed, e correr o risco de jogar pelo ralo toda a campanha militar que vinha conduzindo até então.
Não direi aqui como termina a cena; peguem o filme nas locadoras, e não se arrependerão. Mas não há dúvida de que o maior problema filosófico é: estava escrito?
3 comentários:
essa história lembra aquela do cara que foge de um encontro marcado com a Morte, apenas para encontrá-la no lugar para onde tinha fugido....
(e sempre dá pra dizer, claro, que "destino" é algo que só se vê "de cima".
o que quer dizer que pra gente, tanto faz se há ou se não há.)
Sim, a história do encontro marcado em Samarra...
No zenchines (c’han) e daoismo, há um fluxo concatenado de eventos mais fortes que a vontade volátil. O destino. Existe um método cruel de prevê-lo chamado ábaco de ferro. Precisão assustadora. Ao mesmo tempo o destino pode ser modificado a cada momento.
uma história sobre como agir e mudar o destino é a de Lião fan e suas quatro lições.
Nosso passado define nosso futuro quando não o harmonizamos.
No zen chinês é isso. Tudo q experimentamos e vai pro fundo da mente começa ali a criar padrões sutis d repetição. E presos a eles não podemos mudar o futuro que esses padrões tendem a gerar.
Dai com certas práticas, métodos, é possível tornar a influência das memórias, pessoais, familiares, culturais, cada vez menor, e então se libertar de seguir o destino já escrito… isto é, desenvolver o livre-arbítrio.
No monoteísmo ocidental e do oriente médio já nascemos com livre arbítrio.
No daoismo e zen chinês, livre arbítrio é algo q se conquista ao se exorcizar o passado, as memórias, pessoais e coletivas.
Uma pessooa liberta é uma chance sempre maior de, na não-linearidade de todas reações e ações, um mundo menos fadado a um destino pre-escrito.
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