De vez em quando aparece um título que merece um Prêmio Nobel, independente do livro. O mais recente que vi é este: Cinqüenta anos falando sozinho, coletânea das poesias completas de um poeta chamado Annibal Augusto Gama. Para mim, fazer poesia não é mais do que isto: falar sozinho. Não pense o leitor que estou fazendo disto um cavalo-de-batalha, e me queixando da “solidão do poeta”, da “incomunicabilidade entre as almas” ou coisa parecida. De jeito nenhum. Falar sozinho é uma das atividades mais prazerosas desta vida, e acho mesmo que é requisito obrigatório para a saúde mental.
Falar sozinho, em primeiro lugar, não implica em dispensar o Outro, prescindir do Outro. Falar sozinho é levar o Outro tão a sério que se é capaz de invocá-lo mesmo em sua ausência. Meus filhos adoram mangar de mim quando me vêem sentado no sofá, absorto, murmurando baixinho alguma coisa, o olhar vago, a mão esboçando uma gesticulação qualquer. “Papai tá falando sozinho!...” gritam, e morrem de rir. Mal sabem eles da profunda lição filosófica que eu estava ensaiando para a próxima sessão de reprimendas.
Falar sozinho é cacoete dos comunicativos em excesso, e não dos introvertidos. Quem fala sozinho é porque tanta coisa a dizer que esses borbotões de texto escapam pelas menores fissuras, como os gases vulcânicos se esgueiram pelas fendas da rocha quando a fervura lá embaixo está muito grande. E fazer poesia é a melhor maneira de falar sozinho sem dar muito na vista, porque aí a cabeça se concentra toda no encaixe das pecinhas-de-Lego-verbais que constituem o poema.
Quando a gente está escrevendo está falando com o mais fictício e o mais real dos interlocutores: um Eu-Mesmo que, de fora, nos escuta. Alguém que sabe tudo que sabemos, lembra tudo que lembramos, sente tudo que sentimos, e que mesmo assim é capaz de se surpreender, para o bem ou para o mal, com o que dizemos. É o nosso leitor ideal.
Não cheguei a ler os poemas de Annibal Augusto Gama. Talvez ele não seja um grande poeta, pelos meus critérios. E daí? Eu também não sou, pelos meus critérios. E as bibliotecas estão cheias de Grandes Poetas cuja obra me deixa indiferente, e que não nomearei porque conheço meu gado, alguns leitores que gostam deles irão pensar que os estou chamando de burros. Não é nada disso, meus camaradas. Poesia é como mulher que passa: a gente fica olhando, uns gostam, outros não, e mesmo as unanimidades são só aparentes. Conheço gente que não gosta de Drummond, de João Cabral, de Shakespeare, de Bob Dylan. Estes especialistas na nobre arte de falar sozinho certamente tentavam, quando se debruçavam sobre o papel, escrever para seu leitor mais arguto, seu leitor mais bem informado, seu leitor mais empático e ao mesmo tempo mais elusivo. Escreviam para a outra metade de si mesmos que desconhecia aquele poema; escreviam para a pessoa que tinham sido até aquele poema começar a existir.
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