domingo, 3 de agosto de 2008

0486) De onde vêm os personagens? (9.10.2004)



(túmulo de Eleanor Rigby)


Conan Doyle afirmava que a inspiração para criar Sherlock Holmes lhe veio do seu professor no curso de medicina em Edimburgo, Dr. Joseph Bell, que era capaz de olhar para um paciente e deduzir uma porção de informações sobre sua vida, a partir de detalhes sutis de sua aparência e comportamento. 

Esta característica do personagem lhe veio, dizia Doyle, por sentir que era preciso fazer o leitor acreditar nos poderes de observação do detetive: ”Está muito bem dizer que um homem é inteligente, mas o leitor quer ver exemplos disto”. 

É um pequeno detalhe como este que faz a diferença entre um escritor competente e um amador bem-intencionado. 

Quantos romances vemos por aí em que um personagem é descrito pelo autor como inteligente, mas em momento algum do livro vemos esta qualidade ser exibida – provavelmente porque o próprio autor não a possui.

Personagens podem ser inspirados em alguém que se conheceu profundamente, como é o caso de Doyle e Bell, mas podem surgir também de um encontro casual. Jorge Luís Borges imagina, em seu conto “Deutsches Requiem”, um penhorista londrino do século 16 que ao morrer pede perdão por suas culpas, “sem suspeitar que a secreta vindicação de sua vida é ter inspirado a um de seus clientes (que o viu só uma vez e de quem não se lembra) o caráter de Shylock”. 

Que tivesse bastado a Shakespeare um único e breve encontro para construir sobre um desconhecido todo o personagem de O Mercador de Veneza não nos admiraria. É mais freqüente do que se imagina.

O americano Brett Halliday, criador do detetive Mike Shayne (muito lido no Brasil nos saudosos livros de bolso das Edições de Ouro), conta que quando trabalhava nos campos de petróleo do México, na juventude, meteu-se numa briga de bar, levou uma garrafada na cabeça e foi salvo por um americano enorme, ruivo, de olhos cinzentos, que quebrou o bar inteiro e conseguiu tirá-lo de lá. 

Tempos depois, reencontraram-se por acaso num bar em Nova Orleans; o ruivo estava novamente bebendo conhaque Martell com gelo. Conversaram um pouco, mas antes que Halliday pudesse perguntar seu nome o sujeito viu dois tipos mal-encarados entrando pela porta da frente, e sumiu pela porta dos fundos – até hoje. Anos depois, Halliday criou Mike Shayne como uma reprodução exata do desconhecido, inclusive a bebida predileta.

Outros personagens vêm não se sabe de onde. Quando Lennon e MacCartney compuseram “Eleanor Rigby”, ficaram travados no nome da personagem – a mulher solitária que recolhe no chão o arroz jogado sobre os noivos após um casamento, e que guarda o próprio rosto num vaso perto da porta. 

Tentaram várias possibilidades, como “Miss Daisy Hawkins”, “Ola Na Tungee” e outros. Muitos anos depois, descobriu-se que no cemitério de Liverpool há o túmulo de uma Eleanor Rigby, esposa de Thomas Woods, falecida em 10 de outubro de 1939 aos 44 anos (há uma foto da lápide no livro A Hard Day´s Write, de Steve Turner).





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