sexta-feira, 1 de agosto de 2008

0480) Agatha Christie e o medo (2.10.2004)


(Agatha e seu marido Max no Iraque)

Em sua autobiografia (que é um dos seus melhores livros, se não o melhor de todos) Agatha Christie discute de vez em quando alguns temas ligados à literatura policial, entre eles o do medo. Embora seja mais famosa por seus romances detetivescos (como os que têm como protagonistas Hercule Poirot e Miss Marple), ela escreveu também romances de crime e suspense, impecáveis, dos quais o mais conhecido deve ser O Caso dos Dez Negrinhos. O que há de mais interessante na saudosa Mrs. Christie é que era uma mulher inteligente, intuitiva, perspicaz, mas sem muita sofisticação conceitual. Vendo-a discutir literatura, história da Inglaterra ou a vida de uma dona-de-casa, estamos diante de alguém que pensa com sutileza e originalidade, mas em momento algum transforma isto em linguajar pseudo-filosofante.

Ela relata que, na infância, uma das coisas que mais lhe causavam medo era a brincadeira da “irmã mais velha”, uma irmã fictícia, que ela imaginava ser louca, morar numa gruta, e ser sósia de sua irmã mais velha, Madge. A brincadeira consistia em Madge mudar de voz no meio de uma conversa e dizer: “Agatha, você sabe quem eu sou, não é? Sou Madge. Você não está pensando que eu sou outra pessoa, não é?” A mudança na voz... a mudança no olhar... alguns pequenos gestos... e isto bastava para que Agatha, com cinco anos, tivesse certeza de que não era Madge que estava ali, mas A Irmã Mais Velha. E saía correndo, aos gritos. Depois, comentava ela: “Por que gostava tanto da sensação do medo? Será que habita em nós algo que se rebela contra uma vida com excessiva segurança? Será que é necessária à vida humana a sensação de perigo? Necessitamos instintivamente de algo a combater, a superar, como se fosse uma prova que quiséssemos dar a nós próprios? Se tirássemos o lobo da história de Chapeuzinho Vermelho, alguma criança gostaria dessa história?”

O medo pode vir dessa capacidade de estranhamento, de distanciamento, de olhar algo que nos é familiar e ver naquilo uma presença ameaçadora. Este processo mental é o reverso de outro que busca nos apaziguar, transformar o estranho ou ameaçador no familiar, no que está sob o controle da consciência. Agatha relata também a história divertida de um de seus netos, Matthew, que certa vez ela viu, aos dois anos de idade, descendo uma escada sozinho. Com medo de rolar pelos degraus, ele se agarrava à balaustrada, descia um degrau de cada vez, murmurando baixinho: “Este é Matthew... ele está descendo a escada...” É uma ilustração nota-dez do nosso processo de racionalização, de olhar-de-fora algo arriscado para assumir um mínimo de controle sobre o que ocorre. E ela diz que todas as vezes que precisava participar de eventos públicos, apesar de sua timidez, murmurava para si mesma: “Esta é Agatha... ela é uma escritora famosa... vai dar uma palestra...” E isto a tranquilizava. Um dos nossos maiores medos é o medo daquilo que nossa mente não consegue dominar.

Um comentário:

alana disse...

Podem diaer que é subliteratura, divertissements sem maior profundidade, o que seja; eu gosto de ler Agatha Christie, sempre gostei. Como de quase tudo o que já li de policial|suspense, de Sherlock Holmes ao melancólico Maigret. Mas Agatha é a mais intrigante, porque é tanta perversidade, são tantas situações de conotações dúbias(a sexualidade de alguns de seus personagens, por exemplo) na obra de uma "pacata senhora inglesa" que não dá pra não ser interessante.
(a propósito, ainda lembro de tê-lo visto no TMSC, no século passado, e daquela versão dos "10 negrinhos", ótima)
:)