The Chess Garden (1990)
é um romance fantástico de Brooks Hansen, sobre as aventuras de um cientista, o
dr. Uyterhoeven, que sai dos EUA de navio para tentar localizar uma ilha
imaginária, Os Antípodas, cujo mapa ele descobriu por acaso. Boa parte do livro
aparece sob a forma de cartas que ele manda para a esposa, e que ela lê para
uma multidão de vizinhos, todos acompanhando as aventuras do doutor como se
fosse um romance-folhetim.
As cartas narram episódios de cunho meio absurdista, que
em alguns momentos lembram Lewis Carroll. Um desses contos narra a visita que o
dr. Uyterhoeven faz à oficina de Eugene, um artesão local. Ali, o doutor
encontra um objeto que chama sua atenção, e ele pergunta do que se trata.
O objeto é um loon,
descrito no livro como “um comprido
objeto de madeira, parecido com uma concha de sopa, exceto pelo fato de ser oco,
e de ter o cabo amarrado com um pano”.
Egbert, um assistente do artesão, pergunta ao doutor que
função ele era capaz de imaginar para aquele utensílio. O doutor coça a cabeça
e sugere: talvez soprar bolhas de sabão... conduzir um ovo grande... servir uma
salada... Egbert escuta, e depois lhe conta a história do objeto.
O loon tinha
sido encontrado por Eugene numa época em que era um objeto de uso comum ali na
ilha, algo que todo mundo conhecia. Eugene tinha espírito de artesão e uma
capacidade fora do comum para perceber a funcionalidade de um objeto. Entre
meia dúzia de cachimbos, ele era capaz de perceber o cachimbo mais bem feito,
mais útil, aquele que tinha o máximo de qualidades com um mínimo de esforço. O
mesmo para uma maçaneta, uma bengala, um cinzeiro...
Ou seja: Eugene tinha um olho clínico apurado para
reconhecer “um espécimen excepcionalmente
não-excepcional”, um utensílio que, longe de se diferenciar dos seus
semelhantes, era, pelo contrário, uma reunião de todas as qualidades mais
simples de sua categoria. Um espécimen perfeito.
“E assim era este loon”,
explica Egbert. A representatividade desse objeto era tão visível aos olhos de
todos que Eugene começou a receber propostas para vendê-lo ou trocá-lo – e
recusava todas. A fama do loon foi
crescendo na ilha. Vinha gente de longe só para admirá-lo. E um belo dia um
príncipe local mandou seu representante, um bispo, oferecendo o cetro do
principado em troca do loon – a
chamada proposta irrecusável.
Eugene recusou a troca; os emissários do bispo começaram
a bater boca com os artesãos da oficina, e logo se estabeleceu um conflito
generalizado, um quebra-quebra furioso em que cada um rachava a cabeça de algum
adversário usando o objeto mais próximo. E nessa confusão, alguém agarrou o
próprio loon e o desceu na cabeça de
alguém. E o loon se partiu ao meio.
Bastou isso para cessar o conflito. Constrangidos, tanto
os visitantes quanto os locais passaram a se desculpar e a lamentar o fato de
que o objeto precioso, defendido e ambicionado por todos, estava destruído. Eugene
tentou consertá-lo, amarrando-o com umas tiras de pano, mas percebeu que não
adiantava. E todos perceberam algo muito pior.
Ao discutir o que acontecera, Eugene perguntou, perplexo:
“Alguém se lembra para que servia essa coisa?”. E ninguém se lembrava.
Todos começaram a cavucar na memória, tentando explicar
para que servia um loon – uma coisa
cuja utilidade, minutos atrás, era tão óbvia quanto a de um garfo ou de uma
gravata. Não era apenas o objeto que
tinha sido destruído, mas a própria idéia dele, o seu conceito, a sua
serventia.
O bispo recolheu sua comitiva e voltou cabisbaixo para contar
tudo ao príncipe – o qual, interrogado, confessou atônito que não tinha mais a
menor idéia de qual a utilidade de um loon,
embora tivesse vários ali mesmo no palácio. E outro bispo arriscou uma
interpretação: a de que o loon de
Eugene talvez tivesse sido “o loon
de todos os loons.”
Talvez o loon destruído tivesse sido aquele que materializava a
essência mesma de todos os loons. Talvez fosse o exemplar que guardava
dentro de si o significado de toda sua categoria. Ora, então, isso explicava o
que acontecera: no momento em que o loon de Eugene foi quebrado durante
a briga e tornou-se inútil, o mesmo passou a valer instantaneamente para todos
os demais loons do mundo.
(capítulo 8, trad. BT)
É uma idéia curiosa, digna de Borges ou de Ítalo Calvino.
Uma projeção da teoria de Platão, segundo a qual no mundo superior, o mundo das
idéias, estão todos os seres ideais em cuja imagem-e-semelhança são criados os
seres do mundo material. Lá existe, digamos a Cadeira ideal, e é pensando
instintivamente nela que nós criamos as cadeiras materiais que usamos em nossa
vida.
Alguns problematizadores costumam debulhar essa idéia até
o absurdo. Perguntam, por exemplo, se no mundo das Idéias existe o Cachorro
Ideal, um único tipo, ou se existem também o Viralata Ideal, o Buldogue Ideal,
o Pequinês, o Pitbull... Pense numa idéia que rende muita conversa noite afora!
De qualquer modo, os conceitos de utilidade e função dos
objetos humanos existem de fato, com ou sem Platão. São conceitos sociais,
coletivos. Todo mundo sabe para que serve um copo, um chapéu, uma maçaneta, uma
chave... O conceito pertence a todos; mas o conceito está sujeito à memória
social. Seu risco de desaparecimento não reside num loon específico, mas na idéia que todos nós temos dos nossos loons.
Quantas pessoas, daqui a cinquenta anos (ou menos até)
saberão para que serve um orelhão? Um
disquete? Uma anquinha? Um lornhão? Um limpa-tipos? Um dedal?
Alguns desses objetos talvez sobrevivam ao desuso e se
mantenham na memória (graças, talvez, à literatura, à sociologia, à “petite histoire”...) Outros se
transformarão em loons, em coisas que
um dia foram familiares a todo mundo e que hoje, mesmo continuando a existir
materialmente, parecem objetos alienígenas, deixados entre nós por visitantes extraterrestres durante algum “piquenique de estrada” em nosso planeta.
Ou então como os objetos absurdos, impossíveis,
inviáveis, inventados pelo francês Jacques Carelman – utensílios que estão a um
passo de fazer sentido mas esse passo nunca é dado.