quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

5034) As minhas vacas (21.2.2024)

 
 


Quando eu tinha doze ou treze anos, na casa em frente à nossa morava um homem que criava duas vacas leiteiras. A casa dele não existe mais, ou melhor, existe no mesmo sentido em que o Maracanã continua existindo no Rio de Janeiro. A estrutura original foi removida, e em seu lugar aplicou-se uma jaqueta arquitetônica, um dente artificial que aproveita a raiz do dente anterior.  
 
Era uma casa larga, de frente para a nossa, mas num nível levemente inferior, porque o Alto Branco é uma colina de inclinação suave, onde tudo desce na direção da Avenida Canal, antes de se reerguer novamente rumo ao centro da cidade. 
 
A poeira do sótão das lembranças me faz às vezes misturar os nomes das famílias que moraram ali, mas ao enfiar a mão no baú da memória o nome que me vem é o de Seu Rodoval. A casa tinha um espaço largo na parte lateral, um beco-coberto, por onde eu e os filhos dele entrávamos para chegar à vacaria, nos fundos. 
 
Ali, tinha um quintal com algumas árvores, com muros baixos e um matagal brabo do lado de fora. E nos fundos da casa havia dois cochos não muito largos onde as duas vacas passavam a maior parte do tempo. Foram poucas as vezes em que me aproximei daqueles seres desmedidos, alienígenas, de corpo maciço e quente, e olhos negros, líquidos, com toda a tristeza e a resignação do mundo. 
 
Eram mansas, e eu ficava brincando com os outros garotos, enquanto algum dos mais velhos pegava a foice, afiava na aresta do degrau de pedra e começava a cortar palma para dar de comer às bichinhas. A palma é um cactáceo (vejam só, eu nessa época já sabia o que era um cactáceo), uma planta achatada e arredondada que serve de alimento ao gado. Como todos os cactos, tem muita fibra, e guarda líquido nos seus internos. A superfície externa tem alguns espinhos pequenos, coisa que a boca da vaca tira de letra. 
 
Zé de Seu Rodoval pegava a foice e ficava fatiando a palma, jogando dentro do cocho ou então estendendo para que a vaca comesse na mão dele. Eu também cheguei a me atrever, peguei um desses pedaços e estendi para a comensal mais próxima. Ela refugou com a cabeça; mas foi para espantar alguma mosca, e então esticou o pescoço e abocanhou prudentemente o pedaço de palma que eu lhe estendia, deixando bem claro que não tinha intenção de arrancar a minha mão resoluta e trêmula. 
 
As vacas eram personagens importantes na economia doméstica da rua, mas não figuravam muito nos meus planos, nem nos planos dos outros meninos, Zé, Boaventura e os mais novos. Nosso negócio era jogar pelada na própria rua, que na época tinha uma extensão de oito ou dez casas e era de terra batida. (Nossa rua só veio a ser calçada pela Prefeitura quando eu já morava fora de Campina, já estava casado e pai.) 




(Rua Estilac Leal, no Alto Branco) 

O jogo de pelada era feito de ponta a ponta da rua e, como sempre, as regras platônicas do futebol eram submetidas ao leito-de-Procusto dos meios de produção da vida real. Por exemplo, de um lado da rua a hipotética “linha lateral” era o mato, e cada bola que um pé puxava de volta dava origem a uma negociação ferrenha, saiu, não saiu. 
 
Do lado oposto era mais tranquilo, porque havia a continuidade dos muros das casas, que eram todas emendadinhas umas nas outras. A bola chutada para aquele lado batia no muro e voltava, então continuava em jogo. 

Quero render minha homenagem (talvez até póstuma) a Zé de Seu Rodoval, que era um cara troncudo, alourado, sardento, com físico de estivador, apesar de naquela época ter menos de vinte anos. Zé não era um craque, mas fez um gol, ali mesmo, em frente às nossas casas, que não esqueci até hoje. 
 
Foi num dia em que ele dominou a bola e partiu para o ataque, foi bloqueado por dois zagueiros adversários – mas nesse instante viu que o goleiro se apavorou e correu para cima deles, na esperança de catar a bola. Zé chutou a bola em diagonal para a linha lateral, ou seja, o muro, onde ela ricocheteou e, numa carambola perfeita, entrou rolando no gol vazio. 
 
Gol mais original do que este, só mesmo o gol de Pedro Beiçola. 
 
Houve uma confusão dentro da pequena área (termo platônico, é claro) quando Pedro Beiçola tentou cabecear, foi empurrado, caiu, a bola bateu lá e cá, e ele, caído quase dentro do gol, estendeu as pernas, prendeu a bola entre os tornozelos, e com um impulso inesperado ergueu as pernas no ar com bola e tudo, e com bola e tudo despencou o corpo para dentro da linha do gol. 
 
Tudo isso aconteceu há cerca de seis décadas, mas serve para mostrar como o futebol é imprevisível, inesgotável, e inesquecível. 
 
Tínhamos a nossa turma, que além de jogar bola gostava de brincar de bandido, de jogar barra-à-bandeira... E lembrei agora do que um dia aconteceu entre Zé e seu irmão Boaventura, que tinha mais ou menos a minha idade. Eles eram uns meninos meio brutos. Eram boa praça mas tinham costume de resolver questão na porrada. E um dia formou-se um alarido na rua, em frente à nossa casa. Minha mãe, que estava na cozinha, foi ao terraço, enxugando as mãos num pano de prato. 
 
Eu estava no quarto lendo, não dei atenção. Ela voltou um tempão depois com a má notícia:  Zé tinha pegado uma briga com Boaventura e deu uma pancada com uma pedra nas costas do irmão, que ficou caído, com suspeita de fratura na coluna vertebral!  Paralisia, pro resto da vida! 
 
Isso me assustou, meti os pés, corri na casa dele para ver, mas não autorizaram, tinham carregado o menino para dentro, a ambulância já tinha sido requisitada. Minha mãe, que vivia um melodrama italiano 24 horas por dia, passou a noite fazendo suas tarefas e suspirando: “Um menino tão bom, tão brincalhão, ficar reduzido a uma cadeira-de-rodas pelo resto da existência!...” 
 
Senti que a ocasião era grave e pedia de mim uma atitude. 
 
Esqueci de dizer que essa fase, dos treze anos, foi a minha fase místico-religiosa. Tudo eu resolvia por meio de rezas e promessas, principalmente os jogos do Treze, que eu assistia no Estádio Presidente Vargas, ou acompanhava pelo rádio da sala, sempre com papel e lápis na mão, para anotar as dezenas (as centenas) de Pai-Nossos, Credos e Ave-Marias que eu prometia a cada ataque do Treze, cada ataque do adversário, cada escanteio, cada falta, cada bola cruzada. 
 
Era uma contabilidade furiosa e muda, porque tudo eu prometia em silêncio, de mim para mim, dez Pai-Nossos, não, quinze! Vinte!  A bola entrava, a bola saía, o placar ia se formando, e no final de tudo eu tinha algumas horas de oração de que me desincumbia de maneira sonambúlica enquanto tomava banho, trocava a roupa, escovava dentes, penteava cabelo, tomava sopa – um murmúrio indistinto como um canto gregoriano, e acelerado como uma narração de jogo por Joselito Lucena da Rádio Borborema. 
 
Habituado a subornar com preces a divindade, resolvi fazer uma promessa para salvar Boaventura do seu destino de paraplégico. Resolvi inovar. Em vez de rezas, fiz uma promessa corajosa: “Para Boaventura ficar bom, prometo ficar um mês SEM LER!”. Formalizei o compromisso com um pelo-sinal e um nome-do-pai, e fui dormir. 
 
Não dormi nada, porque minha consciência cartesiana não deixou. A certa altura, me veio uma pergunta com minha própria voz: “Um mês sem ler? E como vai ser no colégio?!”  Abri o olho no escuro, liguei de novo para Deus e avisei: “Com exceção dos livros do colégio! Tudo bem?”  Deus, como sempre, calou e consentiu. 
 
Meu amigo ficou acamado um tempo, mas a cada dia as notícias eram melhores, ele foi ao hospital, depois voltou, a gente ia visitá-lo, eu ficava conversando no quarto, muito formal, como no tempo em que minha mãe fez cirurgia no Pedro I. Hospital exige gravidade, a gente fica pensando na vida e comendo maçã. 
 
Com uma semana de promessa minha vida tinha se transformado num inferno, porque no meu movelzinho do quarto havia duas ou três pilhas de livros de bolso para ler, era Futurâmica, era Agente Secreto FX-18, era Irving Le Roy... Eu matava a vontade lendo os livros do colégio, até que não aguentei mais. 
 
Convoquei Deus para uma reunião e expliquei: “O senhor deve ter visto que hoje de tarde eu estava lendo a História das Invenções de Hendrik Van Loon e a História da Raça Humana de Henry Thomas. Não são livros do colégio, mas são livros de estudo, certo? Vamos considerar assim: livros de estudo, pode”. 
 
Nunca fui sertanejo, que morre mas não quebra, quebra mas não entorta. Sempre tive esse caráter meio escorregadio, negociador, conciliador, disposto a regatear milagres com Deus desde que fosse para o bem de todos e felicidade geral da nação. 
 
Para encurtar a história, duas semanas depois estava Boaventura lépido e fagueiro correndo atrás da bola, e eu de olheiras fundas sem poder pegar o livro novo de F. Richard-Bessière ou de Bruno Fischer, enganando Deus com a leitura de alguma enciclopédia ou biografia (“livros de estudo”). 
 
E por trás de tudo isto eu chegava ao terraço e via os meninos de Seu Rodoval tangendo e guiando as duas vacas na sua saída eventual para não-sei-o-quê. Ainda hoje não entendo se as vacas são como os cachorros, que todo fim de tarde precisam sair para passear. 
 
E quando eram recolhidas à vacaria eu aparecia novamente ali, para sentir aquele cheiro de palha azeda, aquele cheiro de bosta de vaca que faz bem à saúde, para ver os estremeções da pele com que elas afugentavam algum inseto perfurador, para olhar aqueles olhos cuja expressão eu reencontraria depois nos versos de Caetano Veloso cantados por Maria Bethania, e que eu entendi com profundidade autobiográfica. 
 
Link
https://www.youtube.com/watch?v=shoYZ26Nr6o
 
Eram apenas duas vacas, e nem sequer eram minhas. Tornaram-se minhas porque dos que alisaram com a mão o seu pelo não restam muitos vivos, e me vejo hoje com mais este compromisso, de mantê-las vivas na lembrança de quem bebeu seu leite. 
 
Chamavam-se Estrelinha e Quixabeira. Estrelinha, porque era preta, e tinha a manchinha branca no meio da testa. 
 
Quantas pessoas, neste dia, neste instante, ainda se lembram delas? Meu irmão, minhas irmãs? Os meninos de Seu Luís, os meninos de Fred? Lembro eu, e celebro seus nomes. Não há nada como um nome para ancorar uma lembrança no cais, impedir que ela enfune velas e parta feliz rumo ao lugar para onde todas as lembranças acabam indo, mais cedo ou mais tarde. 

 


 
 






3 comentários:

Marta Rezende disse...

A maior diferença entre o homem e a vaca é que a vaca sabe como existir, como viver sem angústia (isto é, sem medo) no bendito presente, sem o pesos do passado e a preocupação com os horrores do futuro. Mas nós, humanos infelizes, somos tão perseguidos pelo passado e pelo futuro que só podemos passar rapidamente pelo presente.

Nietzsche - Humano, demasiado humano.

Marta Rezende disse...

Pensando bem, é meio besta esse pensamento do Nietzsche. As vacas são muito críticas ao presente.

Anônimo disse...

Existe uma paquera diferença entre um vaca e um homem:, Marta: um homem é capaz de perceber essa diferença e inclusive pôr em crise essa diferença.