Quando eu tinha doze ou treze anos, na casa em frente à
nossa morava um homem que criava duas vacas leiteiras. A casa dele não existe
mais, ou melhor, existe no mesmo sentido em que o Maracanã continua existindo
no Rio de Janeiro. A estrutura original foi removida, e em seu lugar aplicou-se
uma jaqueta arquitetônica, um dente artificial que aproveita a raiz do dente anterior.
Era uma casa larga, de frente para a nossa, mas num nível
levemente inferior, porque o Alto Branco é uma colina de inclinação suave, onde
tudo desce na direção da Avenida Canal, antes de se reerguer novamente rumo ao
centro da cidade.
A poeira do sótão das lembranças me faz às vezes misturar
os nomes das famílias que moraram ali, mas ao enfiar a mão no baú da memória o
nome que me vem é o de Seu Rodoval. A casa tinha um espaço largo na parte
lateral, um beco-coberto, por onde eu e os filhos dele entrávamos para chegar à
vacaria, nos fundos.
Ali, tinha um quintal com algumas árvores, com muros
baixos e um matagal brabo do lado de fora. E nos fundos da casa havia dois
cochos não muito largos onde as duas vacas passavam a maior parte do tempo. Foram
poucas as vezes em que me aproximei daqueles seres desmedidos, alienígenas, de
corpo maciço e quente, e olhos negros, líquidos, com toda a tristeza e a
resignação do mundo.
Eram mansas, e eu ficava brincando com os outros garotos,
enquanto algum dos mais velhos pegava a foice, afiava na aresta do degrau de
pedra e começava a cortar palma para dar de comer às bichinhas. A palma é um
cactáceo (vejam só, eu nessa época já sabia o que era um cactáceo), uma planta
achatada e arredondada que serve de alimento ao gado. Como todos os cactos, tem
muita fibra, e guarda líquido nos seus internos. A superfície externa tem
alguns espinhos pequenos, coisa que a boca da vaca tira de letra.
Zé de Seu Rodoval pegava a foice e ficava fatiando a
palma, jogando dentro do cocho ou então estendendo para que a vaca comesse na
mão dele. Eu também cheguei a me atrever, peguei um desses pedaços e estendi
para a comensal mais próxima. Ela refugou com a cabeça; mas foi para espantar
alguma mosca, e então esticou o pescoço e abocanhou prudentemente o pedaço de
palma que eu lhe estendia, deixando bem claro que não tinha intenção de
arrancar a minha mão resoluta e trêmula.
As vacas eram personagens importantes na economia
doméstica da rua, mas não figuravam muito nos meus planos, nem nos planos dos
outros meninos, Zé, Boaventura e os mais novos. Nosso negócio era jogar pelada
na própria rua, que na época tinha uma extensão de oito ou dez casas e era de
terra batida. (Nossa rua só veio a ser calçada pela Prefeitura quando eu já
morava fora de Campina, já estava casado e pai.)
(Rua Estilac Leal, no Alto Branco)
O jogo de pelada era feito de ponta a ponta da rua e,
como sempre, as regras platônicas do futebol eram submetidas ao
leito-de-Procusto dos meios de produção da vida real. Por exemplo, de um lado
da rua a hipotética “linha lateral” era o mato, e cada bola que um pé puxava de
volta dava origem a uma negociação ferrenha, saiu, não saiu.
Do lado oposto era mais tranquilo, porque havia a
continuidade dos muros das casas, que eram todas emendadinhas umas nas outras.
A bola chutada para aquele lado batia no muro e voltava, então continuava em
jogo.
Quero render minha homenagem (talvez até póstuma) a Zé de
Seu Rodoval, que era um cara troncudo, alourado, sardento, com físico de
estivador, apesar de naquela época ter menos de vinte anos. Zé não era um
craque, mas fez um gol, ali mesmo, em frente às nossas casas, que não esqueci
até hoje.
Foi num dia em que ele dominou a bola e partiu para o
ataque, foi bloqueado por dois zagueiros adversários – mas nesse instante viu
que o goleiro se apavorou e correu para cima deles, na esperança de catar a
bola. Zé chutou a bola em diagonal para a linha lateral, ou seja, o muro, onde
ela ricocheteou e, numa carambola perfeita, entrou rolando no gol vazio.
Gol mais original do que este, só mesmo o gol de Pedro
Beiçola.
Houve uma confusão dentro da pequena área (termo
platônico, é claro) quando Pedro Beiçola tentou cabecear, foi empurrado, caiu,
a bola bateu lá e cá, e ele, caído quase dentro do gol, estendeu as pernas,
prendeu a bola entre os tornozelos, e com um impulso inesperado ergueu as
pernas no ar com bola e tudo, e com bola e tudo despencou o corpo para dentro
da linha do gol.
Tudo isso aconteceu há cerca de seis décadas, mas serve
para mostrar como o futebol é imprevisível, inesgotável, e inesquecível.
Tínhamos a nossa turma, que além de jogar bola gostava de
brincar de bandido, de jogar barra-à-bandeira... E lembrei agora do que um dia
aconteceu entre Zé e seu irmão Boaventura, que tinha mais ou menos a minha idade.
Eles eram uns meninos meio brutos. Eram boa praça mas tinham costume de
resolver questão na porrada. E um dia formou-se um alarido na rua, em frente à
nossa casa. Minha mãe, que estava na cozinha, foi ao terraço, enxugando as mãos
num pano de prato.
Eu estava no quarto lendo, não dei atenção. Ela voltou um
tempão depois com a má notícia: Zé tinha
pegado uma briga com Boaventura e deu uma pancada com uma pedra nas costas do
irmão, que ficou caído, com suspeita de fratura na coluna vertebral! Paralisia, pro resto da vida!
Isso me assustou, meti os pés, corri na casa dele para
ver, mas não autorizaram, tinham carregado o menino para dentro, a ambulância
já tinha sido requisitada. Minha mãe, que vivia um melodrama italiano 24 horas
por dia, passou a noite fazendo suas tarefas e suspirando: “Um menino tão bom,
tão brincalhão, ficar reduzido a uma cadeira-de-rodas pelo resto da
existência!...”
Senti que a ocasião era grave e pedia de mim uma atitude.
Esqueci de dizer que essa fase, dos treze anos, foi a minha
fase místico-religiosa. Tudo eu resolvia por meio de rezas e promessas,
principalmente os jogos do Treze, que eu assistia no Estádio Presidente Vargas,
ou acompanhava pelo rádio da sala, sempre com papel e lápis na mão, para anotar
as dezenas (as centenas) de Pai-Nossos, Credos e Ave-Marias que eu prometia a
cada ataque do Treze, cada ataque do adversário, cada escanteio, cada falta,
cada bola cruzada.
Era uma contabilidade furiosa e muda, porque tudo eu
prometia em silêncio, de mim para mim, dez Pai-Nossos, não, quinze! Vinte! A bola entrava, a bola saía, o placar ia se
formando, e no final de tudo eu tinha algumas horas de oração de que me
desincumbia de maneira sonambúlica enquanto tomava banho, trocava a roupa,
escovava dentes, penteava cabelo, tomava sopa – um murmúrio indistinto como um
canto gregoriano, e acelerado como uma narração de jogo por Joselito Lucena da
Rádio Borborema.
Habituado a subornar com preces a divindade, resolvi
fazer uma promessa para salvar Boaventura do seu destino de paraplégico.
Resolvi inovar. Em vez de rezas, fiz uma promessa corajosa: “Para Boaventura
ficar bom, prometo ficar um mês SEM LER!”. Formalizei o compromisso com um
pelo-sinal e um nome-do-pai, e fui dormir.
Não dormi nada, porque minha consciência cartesiana não
deixou. A certa altura, me veio uma pergunta com minha própria voz: “Um mês sem
ler? E como vai ser no colégio?!” Abri o
olho no escuro, liguei de novo para Deus e avisei: “Com exceção dos livros do
colégio! Tudo bem?” Deus, como sempre,
calou e consentiu.
Meu amigo ficou acamado um tempo, mas a cada dia as
notícias eram melhores, ele foi ao hospital, depois voltou, a gente ia
visitá-lo, eu ficava conversando no quarto, muito formal, como no tempo em que
minha mãe fez cirurgia no Pedro I. Hospital exige gravidade, a gente fica
pensando na vida e comendo maçã.
Com uma semana de promessa minha vida tinha se
transformado num inferno, porque no meu movelzinho do quarto havia duas ou três
pilhas de livros de bolso para ler, era Futurâmica, era Agente Secreto FX-18,
era Irving Le Roy... Eu matava a vontade lendo os livros do colégio, até que
não aguentei mais.
Convoquei Deus para uma reunião e expliquei: “O senhor
deve ter visto que hoje de tarde eu estava lendo a História das Invenções de Hendrik Van Loon e a História da Raça Humana de Henry Thomas. Não são livros do colégio,
mas são livros de estudo, certo? Vamos considerar assim: livros de estudo, pode”.
Nunca fui sertanejo, que morre mas não quebra, quebra mas
não entorta. Sempre tive esse caráter meio escorregadio, negociador,
conciliador, disposto a regatear milagres com Deus desde que fosse para o bem
de todos e felicidade geral da nação.
Para encurtar a história, duas semanas depois estava
Boaventura lépido e fagueiro correndo atrás da bola, e eu de olheiras fundas
sem poder pegar o livro novo de F. Richard-Bessière ou de Bruno Fischer,
enganando Deus com a leitura de alguma enciclopédia ou biografia (“livros de
estudo”).
E por trás de tudo isto eu chegava ao terraço e via os
meninos de Seu Rodoval tangendo e guiando as duas vacas na sua saída eventual
para não-sei-o-quê. Ainda hoje não entendo se as vacas são como os cachorros,
que todo fim de tarde precisam sair para passear.
E quando eram recolhidas à vacaria eu aparecia novamente
ali, para sentir aquele cheiro de palha azeda, aquele cheiro de bosta de vaca
que faz bem à saúde, para ver os estremeções da pele com que elas afugentavam
algum inseto perfurador, para olhar aqueles olhos cuja expressão eu
reencontraria depois nos versos de Caetano Veloso cantados por Maria Bethania,
e que eu entendi com profundidade autobiográfica.
Link
https://www.youtube.com/watch?v=shoYZ26Nr6o
Eram apenas duas vacas, e nem sequer eram minhas. Tornaram-se
minhas porque dos que alisaram com a mão o seu pelo não restam muitos vivos, e
me vejo hoje com mais este compromisso, de mantê-las vivas na lembrança de quem
bebeu seu leite.
Chamavam-se Estrelinha e Quixabeira. Estrelinha, porque
era preta, e tinha a manchinha branca no meio da testa.
Quantas pessoas, neste dia, neste instante, ainda se
lembram delas? Meu irmão, minhas irmãs? Os meninos de Seu Luís, os meninos de
Fred? Lembro eu, e celebro seus nomes. Não há nada como um nome para ancorar
uma lembrança no cais, impedir que ela enfune velas e parta feliz rumo ao lugar
para onde todas as lembranças acabam indo, mais cedo ou mais tarde.
A maior diferença entre o homem e a vaca é que a vaca sabe como existir, como viver sem angústia (isto é, sem medo) no bendito presente, sem o pesos do passado e a preocupação com os horrores do futuro. Mas nós, humanos infelizes, somos tão perseguidos pelo passado e pelo futuro que só podemos passar rapidamente pelo presente.
ResponderExcluirNietzsche - Humano, demasiado humano.
Pensando bem, é meio besta esse pensamento do Nietzsche. As vacas são muito críticas ao presente.
ResponderExcluirExiste uma paquera diferença entre um vaca e um homem:, Marta: um homem é capaz de perceber essa diferença e inclusive pôr em crise essa diferença.
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