terça-feira, 3 de agosto de 2021

4730) A palavra "vela" (3.8.2021)




Estava lendo um texto em inglês a respeito de pessoas que compram uma granja para produção de ovos de galinha. A certa altura, o texto diz, no depoimento de uma das donas da granja:
 
When you candle 22.000 eggs and those eggs are worth 2 1/2 cents each to you there is an extra element of satisfaction!
 
“To candle eggs”? Eu conheço “candle” como substantivo, significando “vela”, mas não tinha visto ainda como verbo. Fui ao pai-dos-burros, o meu manuseado Webster/Houaiss, e lá estava:
 
candle – (...) vt. examinar (esp. ovos) por transparência à chama de uma vela ou qualquer outra fonte de luz.
 
Bastou isso para me fazer lembrar as muitas vezes em que vi, no cinema ou na vida real, uma pessoa erguendo um ovo de encontro à luz do sol que entra pela janela, para “olhar por dentro” dele.
 
Tradutores que gostam de tomar cerveja sabem que tão impossível quanto pedir apenas uma saideira é ir procurar uma palavra no dicionário e olhar apenas aquela. A gente sempre fica curioso em peruar mais alguma coisa.
 
No caso, fiquei pensando na diferença entre “candle” e “vela” – por que razão a palavra inglesa é tão diferente da palavra em português? É sempre bom pensar nessas coisas. A primeira associação de idéias que me ocorreu foi comparar com outras línguas, e bingo! – está na cara que a palavra supostamente inglesa é de origem uma palavra latina, visto que vela em francês é “chandelle” e em espanhol é “candela”.
 
Por que do latim e não do grego? – a gente se pergunta às vezes. O indispensável Online Etymological Dictionary apaziguou minha inquietação, informando-me que na antiga Grécia as velas eram desconhecidas, pois aos gregos lhes bastavam as lamparinas a óleo. Foi com os romanos e os etruscos que elas se tornaram comuns.
 
Como confirmação dessa latinidade, bastou-me lembrar de duas musiquinhas.



“Mon ami Pierrot”
https://www.youtube.com/watch?v=z14y_YjbqVM



Buena Vista Social Club:
“Candela”
https://www.youtube.com/watch?v=4_7zkXv17QE

 
A origem da palavra é mesmo o latim, e lembrei mais ainda que no campo da ciência, óptica, eletricidade e áreas afins usa-se o termo “candela” como unidade de brilho para comparar duas fontes de luz.
 
E dessa raiz latina vieram palavras como “candelabro” (suporte oco onde se enfiam velas para iluminar um ambiente”), “candeia” significando qualquer fonte de luz mediante um pequeno pavio aceso, a qual por sua vez deu origem a “encandear”, esse verbo tão poético e tão nordestino, sinônimo de “ofuscar, tornar momentaneamente cego por um excesso de luminosidade”.
 
E olha só... Como candelabro em francês é “chandelier” acabei desconfiando (e conferindo) que o sobrenome inglês Chandler, que já consagrou o ator Jeff e o escritor Raymond, significa “fazedor ou vendedor de velas”. Como tantos sobrenomes europeus, tem como origem a atividade de ganha-pão de pessoas humildes.
 
Certo. Mas, e a nossa palavra “vela”, de onde vem? Curiosamente, vem do latim “vigilia”, o hábito de pessoas passarem a noite acordadas cumprindo um ritual qualquer, seja para encomendar um morto, seja para evitar ser apanhado de surpresa por um inimigo. Com esta última conotação desenvolveram-se do século 16 em diante, a partir do francês, palavras como vigiar, vigilância, vigilante, etc.

 
Velar, portanto, é ficar acordado, com ou sem vela acesa, mas é melhor com, para não esquecer os lindos versos da canção de Chico César, “Onde Estará o Meu Amor”:
 
Será que vela como eu?
Será que chama como eu?
 
A esta altura eu já estava meio perdido em divagações, e quis lembrar de que ponto tinha partido todo este fio de busca. Era a granja de ovos! E ela me trouxe por associação de idéias os versos inesquecíveis de João Cabral de Melo Neto em “O ovo de galinha” (em Serial, 1959-1961):
 
Na manipulação de um ovo
um ritual sempre se observa:
há um jeito recolhido e meio
religioso em quem o leva.
 
Se pode pretender que o jeito
de quem qualquer ovo carrega
vem da atenção normal de quem
conduz uma coisa repleta.
 
O ovo porém está fechado
em sua arquitetura hermética
e quem o carrega, sabendo-o,
prossegue na atitude regra:
 
procede ainda da maneira
entre medrosa e circunspecta
quase beata, de quem tem
nas mãos a chama de uma vela.
 
Então era isso. Pude traduzir:
 
Quando você examina 22 mil ovos em contraluz, e cada um desses ovos tem para você o valor de dois centavos e meio, isso traz um elemento extra de satisfação!
 
É mesmo.
 





4 comentários:

RODRIGO AMORIM disse...

Que interessante. Ficamos esclarecidos!

Daniel Braga disse...

Estas curiosidades são sempre legais. Parabéns pelo artigo que nos abduz da realidade por alguns minutos.

Paulo Rafael disse...

Demais!

Carlos Almeida disse...

Oi Braulio, li com muito entusiasmo o seu texto, e fiquei animado em saber que você, Tavares, se liga nessa questão da origem das palavras também..rs. Eu já fui bem apaixonado por esse tema, e acho que no fundo ainda sou. Em 2008 quando me formei em letras entreguei um tcc (avaliado com um 10 rs) no qual o abordava.. eis um excerto:

Prender-se ao significado original de uma palavra para tentar definir as coisas que elas representam é um equívoco condenado pela Lingüística e pela própria vida, as palavras não podem ser compreendidas apenas pelo seu sentido primitivo. Muitas delas, inclusive, desligam-se do sentido literal que tinham quando do seu nascimento. Os vocábulos transformam-se, alargam ou estreitam seu significado e, ainda podem ter o sentido estendido, se utilizados de uma forma alegórica, metafórica. Essa polissemia existente na língua mostra que não há nada de definitivo acerca das mudanças de significado. Uma palavra pode adquirir um sentido novo sem perder o seu significado original. Por outro lado, ela pode distanciar-se tão longinquamente do que representava, que não mais será lembrada ou utilizada no seu sentido original (MORENO, 2007).

Tomando-se o vocábulo batismo como exemplo, algum purista da língua dirá que o termo só poderá ser empregado quando se tratar de mergulho nas águas de um rio, visto que o étimo mostra a ligação de um termo ao outro: do grego – baptizein e do latim – baptizare, alusivo à imersão completa que se fazia em sacramento aos convertidos da Igreja Primitiva. Excetuando-se a questão religiosa da obrigatoriedade de ser o batismo uma imersão – sabe-se que há divergência entre denominações religiosas quanto à aplicação e ao procedimento desse ritual eclesiástico – o termo, no português, ganhou também a acepção de iniciação, o que permite por exemplo falar-se em “batismo de fogo de um combatente”, e a acepção de atribuir um nome, por isso é usado sem estranhamento “batizei meu cãozinho de Totó”. Além disso, a língua portuguesa, com ironia, passou a utilizar o verbo batizar para denominar a prática desonesta de adulterar líquidos, adicionando a eles quantidades favoráveis de água, daí aceitarem-se as locuções: uísque batizado, gasolina batizada, leite batizado etc. Como foi visto, por extensão de significado, não apareceu, em todas as acepções que o vocábulo batismo adquiriu, a noção de imersão – tão inerente ao sentido original.

A tendência em ampliar a abrangência significativa de um vocábulo é própria de qualquer idioma. É por isso que se diz que os dicionários engrossam mais pela atribuição de significados a palavras já existentes do que pelo surgimento de novas palavras. Elas não significam hoje, necessariamente, o que significavam em outros tempos; a princípio, corneta – derivado de corno, era um instrumento de sopro feito a partir de um chifre (similar a um berrante), e jornada irmã de jornal, era o trajeto percorrido em um só dia. Hoje a corneta é de metal e fala-se em “jornadas nas estrelas”, que podem durar vários anos-luz.

Especula-se, também, que o termo cecê – usado para designar o mau cheiro das axilas – teria uma origem indígena, assim como: inhaca e chulé, ou teria sido formado como aquelas palavras que se usam em família, típica da linguagem usada para interagir com crianças – caracterizada pela repetição de sílabas: popô, xixi, tetê, naná e outras. No entanto, trata-se de uma espécie de um empréstimo lingüístico. Havia nos Estados Unidos uma marca de sabonete, campeã de vendas por lá, chamada Life-buoy, a qual, em seu slogan, se dizia insuperável na capacidade de eliminar o mau cheiro do corpo, o B.O. (sigla para body odor). Com a fama, o produto foi lançado no Brasil e os produtores mantiveram a mesma estratégia de publicidade, traduzindo, então B.O. (body odor) para C.C. (cheiro do corpo). A sigla ganhou popularidade e não demorou muito para entrar no léxico da língua portuguesa – cecê está devidamente dicionarizada, com essa mesma grafia.