4709) O beijo radioativo da morte (31.5.2021)
Kiss me Deadly (1955),
dirigido por Robert Aldrich, teve no Brasil o título de O Beijo da Morte. É um desses filmes que “estouram a costura” dos gêneros
cinematográficos, unindo elementos disparatados, contraditórios. Toda vez que o
filme vai se encaminhando na direção de um clichê previsível, escorrega e vai
noutro rumo.
Começa pelo protagonista. Mike Hammer é o detetive
particular criado por Mickey Spillane, apologista do machismo e da violência.
Acho que li um ou dois romances de Spillane, que de fato tem esse viés meio
sadístico, com longas cenas de espancamento e de violência física descritas com
visível prazer. Se os leitores dele compraram ingresso para ver isso, quebraram
a cara. A única cena “spillanesca” no filme é quando Hammer fecha uma gaveta
nos dedos do médico gordinho que se recusa a entregar-lhe um objeto-chave para
a solução do mistério.
E Hammer não aparece como nenhum brucutu. Interpretado por
Ralph Meeker, ele está até bastante “meek”, embora sempre carrancudo quando
se confronta com a polícia. E também dá uma de indiferente quando recebe os afagos
de sua secretária-amante Velda (Maxine Cooper), aquela típica assistente devota
sem a qual o detetive não conseguiria juntar as pistas. Os dois têm boas cenas,
e alguns diálogos memoráveis (Ele: “Você nunca está por perto quando eu preciso
de você.” Ela: “Você nunca precisa de mim quando eu estou por perto.”).
É um filme “noir” pelo estilo visual, pela fotografia de
Ernest Lazslo, cheia de ângulos caprichados e iluminação em alto contraste. E pela
sensação de perigo desconhecido e iminente. Nem o público nem o detetive fazem a
menor idéia do que está acontecendo, e de por que tanta gente aparece morta de
uma hora para outra.
Existe uma fronteira pouco nítida entre o policial “noir”
e o policial “hardboiled”. Em geral, usam-se esses dois termos com a mesma função,
tanto na literatura quanto no cinema. Há uma distinção, contudo, se quisermos
ser mais precisos.
O “noir” é geralmente uma história de indivíduos meio
fracassados, atormentados, metidos em crimes, ameaças, situações-limite,
lutando contra tudo. São homens e mulheres anônimos, civis comuns, perdidos na selva
urbana e entrando em choque com as feras, metendo-se em situações de crime sem
saber ao certo por quê.
O “hardboiled” é o romance ou filme sobre indivíduos
durões, resolutos, às vezes violentos, mas sempre implacáveis, que enfrentam
forças superiores à sua. Frequentemente é um detetive particular que bate de
frente com a polícia, com os bandidos, com a imprensa, com a Justiça. São sujeitos
cínicos, calejados, às vezes sedutores, inteligentes o bastante para fazerem
deduções detetivescas, e impacientes o bastante para descer a porrada quando
precisam resolver logo uma pendência.
O Beijo da Morte
é uma mistura dos dois, porque no cinema o filme “hardboiled” não me parece ter
criado uma estética visual específica, e o “noir” sim. Alguns grandes filmes
com a estética “noir” (fotografia, iluminação, cenários) são A Marca da Maldade (1958) de Orson Welles,
O Terceiro Homem (1949) de Carol Reed,
Pacto de Sangue (1944) de Billy
Wilder... Filmes com influência do Expressionismo Alemão e com aqueles ângulos
extravagantes, um claro-escuro violento, efeitos de iluminação móvel (faróis de
carro que passam, lâmpada que balança, lanternas elétricas nas mãos, etc.).
Cenários às vezes bizarros, às vezes filmados em ângulos ameaçadores.
E ao mesmo tempo o roteiro de A. I. Bezzerides desenvolve
uma situação típica de filme hardboiled, onde o detetive, a polícia e os
bandidos formam um triângulo de ameaças mútuas numa correlação de forças que se
altera a cada cena, a cada nova morte, a cada nova surpresa, mas o detetive
durão assume sempre aquela atitude de quem “não abre nem prum trem”.
Aí entramos em outra reviravolta. Mike Hammer se meteu
nesse mistério porque resolveu dar uma carona a uma mulher misteriosa, vestida
apenas numa capa, que vinha correndo à noite pela rodovia. Os dois são presos
por bandidos, a mulher é torturada e morta, e Hammer decide que vai, se não
propriamente vingá-la, pelo menos entender por que ela representava uma ameaça
para alguém.
Kiss Me Deadly dá
algumas triscadas de leve na ficção científica ou pelo menos no policial high-tech que viria a se consagrar no
futuro em filmes como A Conversação (1974)
de Francis Coppola. Ele nos mostra na casa/escritório de Hammer uma secretária
eletrônica que utiliza um gravador-de-rolo daqueles antigos. Engenhocas assim
já existiam em 1955, mas o que tento imaginar hoje é o impacto que a visão
desse aparelho, na casa de um detetive, produziria na platéia.
E o filme tem um dos “McGuffins” mais intrigantes na
história do cinema. “McGuffin” é uma expressão atribuída a Alfred Hitchcock
para designar o objeto que todo mundo (detetive, bandidos, polícia) luta para obter.
Pode ser dinheiro, jóias, drogas, documentos, planos secretos de um submarino
atômico... No fim não importa, dizia Hitchcock; ele está ali somente para botar
em movimento o mecanismo das mortes e das perseguições.
O primeiro McGuffin da história é uma mensagem que a
mulher da cena inicial deixa para Hammer. No momento em que ele lhe dá carona
no carro, ela diz que se chama Christina, em homenagem à poetisa Christina Rossetti.
O detetive dá a essa informação a carga de irrelevância que seria de se esperar
da parte de um detetive de Mickey Spillane. Mais tarde, porém, ele descobre no
apartamento da mulher um livro da poetisa, leva-o consigo, e mediante uma
dedução consideravelmente facilitada pelo roteirista do filme, acaba chegando ao
segundo McGuffin.
Que é uma caixa misteriosa, guardada num armário de um
clube. Quando Hammer encontra a caixa, comenta em voz alta que ela parece muito
quente. Ao entreabri-la, escapa-se dali uma luz de calor intenso, que acaba
queimando sua mão. E no clímax da narrativa outra pessoa abre de vez a caixa e
ela se transforma, como um personagem advertira pouco antes, na Caixa de
Pandora. A caixa capaz de libertar todos os males do mundo.
Subentende-se que a caixa continha alguma coisa
radioativa (é bom lembrar que o filme surgiu apenas dez anos depois de
Hiroshima), se bem que cientificamente isso suscita mais desconfiança do que
respostas. Não importa: é a guinada final de um filme que era ao mesmo tempo um
policial “noir” e um “hardboiled”, e que na sua reta final vira a esquina
bruscamente rumo à ficção científica, mas a FC de filmes muito pouco
científicos como Tarantula (1955) de
Jack Arnold ou O Mundo em Perigo (1954)
de Gordon Douglas.
Essas pequenas heresias genéricas acabaram tornando Kiss Me Deadly um filme memorável no
meio de tantos outros, cinematograficamente superiores, mas que mantêm do
começo ao fim a coerência de gênero – como O
Falcão Maltês (1941) de John Huston ou The
Big Sleep (1946) de Howard Hawks.
E a “caixa da morte luminosa” deixou uma impressão
duradoura no cinema dos EUA. Dois ou três exemplos me vieram logo à memória, e
uma pequena busca no Internet Movie Data Base me trouxe outros. A abertura da
Arca da Aliança no final de Os Caçadores
da Arca Perdida (1981) de Spielberg, derretendo todo mundo com sua luz
mortífera. O misterioso alienígena escondido na mala do carro-em-fuga do
subclássico Repo Man, a Onda Punk (1984)
de Alex Cox. A bola luminosa que concentra em si toda a maldade do mundo, no
desenho-antologia Heavy Metal, Universo
em Fantasia (1981) de Gerald Potteron. E mais, e mais...
Como diria alguma divindade cínica, tatuada e sob o
efeito de um poderoso psicotrópico: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos
derreterá”.
(O filme pode ser visto por quem se associar, e o preço é bem compensador, ao saite de streaming Belas Artes À La Carte, que recomendo.)
2 comentários:
Os caçadores da Arca Perdida/007 Goldfinger/ outros 2(Raquel Wech?saindo do mar)Chaplin O gr.ditador/Era do ouro/Tempos Modernos (O turista;A viagem) +25 cia nos 1os.11 meses. Now dentro cxinha celular/tv quebrou/dvds descansam. Ass: Pantelha Fantasmo.
Delícia descobrir/conhecer Mundo Fantasmo. Concluí curso Campina Grande. Faremos 71 neste ano. Grata. Vc seus escritos/falas remetem ao jovem que conheci. 'Tempo, a única coisa que possuímos' CDA. Weracy
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