(xilogravuras: Stenio Diniz, Juazeiro-CE)
Uma confusão frequente de quem tenta se comunicar com um nordestino é o fato de que há inúmeras palavras da língua portuguesa que no Nordeste (ou em certas partes do Nordeste, região mais heterogênea do que se pensa) se usa de outra forma.
Esses usos, de
palavras aparentemente banais, são tão tipicamente nordestinos quando termos
tipo “oxente”, “gota serena” ou “amulestado”. Já referi neste blog termos como
vexado – que no Sudeste significa “constrangido, envergonhado” e no Nordeste
quer dizer “apressado”.
Aqui vão mais alguns
desses “falsos amigos” que nos levam a ouvir uma coisa e entender outra.
MANEIRO
No Rio, é uma gíria relativamente recente (falo de quinze a vinte anos
para cá) para dizer “bacana, legal, ótimo”. No Nordeste, quer dizer “leve”.
“Deixe eu carregar a mala grande, você leva essa valise que é mais
maneira”.
“Ele falou que o baú era bem maneirinho, mas precisou de três pessoas
pra botar em cima da caminhonete”.
Depois de sessenta dias
alta noite em nevoeiro
Evangelista chegou
em seu pavão tão maneiro
desceu pela mesma trilha
a seu modo traiçoeiro.
(João
Melquíades Ferreira, Romance do Pavão
Misterioso)
Menina, minha menina,
me escuta, qu'eu te carrego,
ai, me bota dentro do seio
ai, qu'eu sou maneiro e não peso.
(Peça
popular de mamulengos, em O Mundo Mágico
de João Redondo, de Altimar de Alencar Pimentel, pag. 105)
ENGUIÇAR
Em todo lugar do mundo, “enguiçar” é “dar pane, dar defeito”, e se
aplica a um carro, um motor, uma máquina qualquer.
No Nordeste, é passar andando por sobre o corpo ou as pernas estendidas
de alguém que está sentado no chão. Diz
a superstição popular que quando isto acontece a pessoa que foi “enguiçada” não
cresce mais. Acredita-se que para anular o efeito basta “desenguiçar”, desfazer
o ato, passar de trás para diante.
“--Ei! Que história é essa de vir
entrando e enguiçar a gente? Pode
voltar, e desenguiçar!”
Também já vi ser atribuído ao ato de “enguiçar” o poder de cura contra
mau-olhado.
“Esse menino só vive doente ultimamente!
Tá bom de alguém enguiçar ele, isso deve ser mau-olhado.”
E ali com um punhal
para Adriano avançou
mas Adriano ligeiro
por cima dele saltou
então quando o enguiçava
mesmo no vão lhe cravou.
(Expedito
Sebastião da Silva, “Adriano e Joaninha”, em Expedito Sebastião da Silva, Ed. Hedra, SP, pag. 165)
RAZÃO
Usa-se muito como sinônimo exato de
"arrogância, prepotência":
"Ei, que razão é essa? Quem é você pra vir me dar ordens?"
"Fulano é muito engraçado: a gente faz o trabalho
todo, resolve todos os problemas, aí quando é depois ele chega, com a maior
razão do mundo, botando defeito em tudo."
É mais frequente na expressão "cheio de
razão":
"Estava tudo muito tranquilo, mas de repente chegou
um cara todo cheio de razão, dizendo que era amigo do dono do bar e que aquela
mesa era dele."
ABUSAR
O sentido mais comum hoje em dia tem a conotação
de “abusar sexualmente, violentar”. Acho que a palavra vem de “ab + usar”, que
significa algo como “usar excessivamente, extrapolar, ultrapassar os limites”.
É essa a idéia base, e os usos particulares de cada ambiente social vão
transferindo a palavra de um sentido para outro.
No Nordeste usamos o verbo como “enjoar, ficar
saciado”. Usa-se com diversas regências:
"Depois
que eu abusei futebol, estou há mais de dez anos sem pisar num
estádio".
"Eu abusei
daquele bar, porque os garçons tratam muito mal a gente".
"O
doce-de-leite que minha mãe faz é bom, mas abusa, eu só aguento comer um
pratinho e pronto".
Existe o provérbio "Tudo de mais
abusa".
Pinto fêz coisas difíceis
de outra pessoa fazer:
fez o tempo lhe esperar
e a morte lhe obedecer,
só aceitou ir com ela
quando abusou de viver.
(Zé Luiz,
cit. em Um século e meio de repentes, de Edvaldo Muniz de Melo, pág.
269)
RAPOSA
Não sei que associação de idéias está por trás disso,
mas “raposa” é um modo de comer feijão com farinha, amassando-o entre os dedos
até formar pequenos bolos bem compactos; muitas mulheres preferem alimentar os
filhos pequenos assim, em vez de com a colher.
“Se lembre bem: quando chegar na casa do seu tio não é
pra comer o feijão feito raposa não, é com o talher!”
Também se chama “cancão” e "capitão".
FEITO
Usa-se na mesma função de “como”; termo de comparação.
“É uma comida esquisita, feito um pirão frio, temperado”.
“Ele estava usando um troço de metal na cabeça, feito um capacete.”
“Fiquei ali feito um idiota, e todo mundo mangando de mim.”
APITAR
Em todo canto “apitar”
é soprar um apito. Em cresci ouvindo essa palavra como sinônimo de “buzinar” (o carro).
Já foi de uso generalizado no Nordeste, mas está desaparecendo nas
últimas décadas, pelo menos nos ambientes por onde eu ando.
“Quando você
chegar lá em casa, apite, que eu desço rapidinho”.
“Olha que
coisa, o cara passou direto no sinal vermelho, nem apitou nem nada”.
“A coisa que eu
tenho mais raiva é esse tipo de alarme que basta a gente encostar num carro e ele
passa dez minutos apitando”.
RISCAR
Chegar de repente, às pressas. É uma imagem bem
concreta, de quem chega fazendo atrito no chão, freando um carro, uma bicicleta,
pisando com força etc.
“Eu já estava desistindo de esperar e ia chamar um táxi,
mas quando deu sete e meia ele riscou com o carro lá em frente, falou que tinha
ficado preso num engarrafamento”.
Ela aí chamou o rei
Ligeiramente mostrou,
O rei também conheceu
Bastante se alegrou,
Bem na porta do palácio
O seu cavalo riscou.
Do seu cavalo apeou
Para no palácio entrar
Já o rei e a rainha
Vieram lhe encontrar
Levaram ele nos braços
Para a saudade matar.
(Minelvino
Francisco da Silva, “O filho de João Acaba-Mundo e o Dragão do Reino
Encantado”, em Minelvino Francisco da Silva, pag. 112)
TIMÃO
Acho que no Brasil todo essa palavra já perdeu o
sentido original de “a roda que se usa parar manobrar o leme e dar direção ao
barco” e passou a ser visto como o apelido do time do Corinthians paulista.
Cujo símbolo visual, aliás, é um timão, uma roda-do-leme.
No Nordeste é o termo (em desuso) que se dava a um
tipo de camisão comprido, usado antigamente pelas crianças.
Meia comprida,
não quer mais sapato baixo
vestido bem cintado
não quer mais vestir timão.
Ela só quer,
só pensa em namorar.
(Luiz
Gonzaga, O Xote das Meninas, de Luiz
Gonzaga e Zé Dantas)
TORNAR
O sentido mais comum é de voltar, vir de volta,
repetir uma ação (“Ele tornou a ligar para casa, mas ninguém atendia”. No
Nordeste se usa como “voltar a si, recuperar a consciência”.
"Minha mãe se sentiu mal na fila do banco, aí,
quando tornou, estava deitada num sofá na sala do gerente, e ouviu uma moça
dizendo: 'Tá viva, graças a Deus!'"
Quando acordei do "ataque", da
"grande aura" que só acomete os gênios, Margarida estava sustentando
minha cabeça em seu colo alvo e aristocrático, e um Soldado de Polícia
esperava, impassível, que eu "tornasse", para me dar um copo d'água
que ele segurava na mão, mantendo o resto do corpo em posição de sentido.
(Ariano
Suassuna, Romance da Pedra do Reino, Folheto LXIV)
FITEIRO
No Nordeste é substantivo, e corresponde ao que no Sudeste seria chamado
de “quiosque”, “barraca” (na forma de tendas metálicas desmontáveis e
portáteis, cobertas por uma lona ou um plástico): um pequeno ponto de venda de
miudezas como brinquedos, cigarros, utilidades caseiras, balas, chocolates,
flâmulas, e ocasionalmente revistas.
Geralmente na forma de uma estante de madeira, com portas que podem ser
trancadas a cadeado, encostada num muro, na calçada. Não é exagero imaginar que
em algum momento ali também se vendiam fitas de tecido, coloridas, para
enfeite.
“O nome dele é Zezinho, ele tem um fiteiro ali perto da esquina”.
“Corre ali no fiteiro e vê se acha um cortador de unhas.”
A MULHER
É um modo de tratamento curioso, meio machista, que
alguém usa para se referir à esposa. Quando
diz “a mulher” está querendo dizer “minha esposa”, mas esse tratamento me
parece mais ríspido e distanciado do que dizer “minha mulher”, que mesmo
impondo o sentido de posse implica também numa proximidade afetiva. Quando o
cara diz “a mulher” é como se dissesse “aquela mulher que tem lá em casa, a que
toma conta das coisas.
“Acho que eu
vou pra casa, por que eu disse à mulher que ia jantar cedo”.
“Ontem teve um
barulho lá no quintal, a mulher acordou assustada, eu achei melhor avisar o
vigia”.