segunda-feira, 1 de abril de 2019

4452) A palavra cachéte (1.4.2019)



(ilustração: comprimidos)

Tem alguns termos que eu não acho que sejam necessariamente paraibanos, mas penso neles desse modo porque estão ligados à minha família, meu tempo de garoto, então pra mim são a cara da “Paraíba réa”. Têm uma carga afetiva, e acho que isso tem uma certa consequência filológica, etimológica.

As palavras que têm mais chance de se propagar (e se metamorfosear) etimologicamente ao longo dos anos são aquelas a que as pessoas recorrem com mais frequência, por motivos afetivos, inclusive.

Um exemplo: ninguém hoje em dia deve saber o que é “cachéte”.

(O acento agudo vai aqui para firmar a pronúncia. A gente deve sempre acentuar palavras pouco conhecidas, e que correm o risco de ser pronunciadas erroneamente pelos muitos que nunca as viram. Pelo menos nas primeiras vezes em que as usamos num texto. Danem-se os acordos ortográficos. Ortografia, inclusive de acentos, também pode, e deve, ser vista pragmaticamente.)

Cachéte significa pílula, comprimido, qualquer medicamento nesse formato. Meus pais diziam isso o tempo todo. “Tá com dor de cabeça? Tome esse cachéte.”

Uma vez, quando eu estudava em Belo Horizonte, meu pai teve que ir de Campina Grande pra Brasília com o reitor da FURNe, resolver alguma pendenga burocrática, e combinamos que eu ia passar dois dias lá com ele. Peguei o busão da Cometa e fui conhecer a Novacap. Seu Nilo tinha reuniões durante o dia, e de noite tomava umas e outras. Um dia amanheceu de ressaca, e chamou o bellboy do hotel. Ao abrir a porta, perguntou ao rapaz:

– Vocês têm cachéte pra ressaca?

A cara desacorçoada do rapaz está comigo ainda hoje. Ele disse:

– Ih, senhor... Eu estou por fora de cachéte.

– Cachete, rapaz. Tu sabe o que é. Cachete pra dor de cabeça.

Ele se apegou a essa frágil tábua de salvação e disse:

– Cachete nós não temos, mas eu posso trazer um comprimido pro senhor.

Entra aqui uma questão de ordem filológica. Existe uma diferença (me parece) entre comprimido e cápsula. Uma cápsula é um cilindro miudinho, oco, de extremidades rombudas, dentro do qual há um pozinho medicinal. Sua finalidade é ser engolida e garantir que o pozinho só seja absorvido pelo organismo daí a alguns minutos, depois que a “cápsula” propriamente dita se dissolva. Por quê, não sei, mas minha curiosidade científica só vai até aí, daí por diante é fé mesmo.

Já um comprimido é exatamente isso: um pozinho que foi compactado por alguma pressão enorme até se transformar num circulozinho espesso, duro. A gente engole inteiro e deixa desmanchar.

Voltando à raiz linguística, me ocorre imaginar que o “cachéte” de Seu Nilo vem do francês “cachet” (pronuncia-se “cachê”, como cachê de músico). A palavra vem do verbo “cacher”, que significa “apertar, pressionar, comprimir”, e então vualá! – em português torna-se “comprimido”.

Por algum tempo eu pensei que era o contrário. Pensei que quem deveria com mais justiça se chamar “cachéte” era a “cápsula”. Por que? Porque “cacher” em francês também significa “esconder, recobrir uma coisa com outra para que não fique visível”, etc. E na cápsula o pozinho vem exatamente assim – escondido.


(ilustração: cápsulas)

Vejam o que é o poder etimológico-afetivo de um termo (na composição do idioma a longuíssimo prazo), porque se Seu Nilo e Dona Cleuza não falassem o tempo todo em “cachéte” eu não estaria aqui agora, sessenta anos depois, lembrando desse termo só por tê-lo visto num livro de Raymond Queneau. Não ficaria cavucando um larusse onlaine em busca desse símbolo froidiano.

Quando eu era pequeno, era chato, luxento, exigente. Me recusava a tentar engolir um cachete inteiro, alegando que podia me sufocar. Minha Tia Adiza dava-se então o trabalho de esmagar o cachete com uma colher, reduzi-lo a pó, misturá-lo com uma pitada de açúcar, e me dar na colher, acompanhado de um gole dágua.

Essa infância espoilada teve uma consequência interessante: hoje eu detesto tomar qualquer tipo de remédio, e para mostrar que não sou mais cheio de fricote, sou capaz de aguentar dor por muito tempo. Já aos quinze anos eu cheguei a passar semanas inteiras com um dente doendo e sem dizer a ninguém.

Como é possível? – perguntará a platéia. E eu me lembro daquela piada sobre os dois hippies. Dois hippies estão, alta madrugada, dando uma bola no mato, olhando a lua cheia, junto de uma lagoa infestada de crocodilos. A certa altura da viagem, um deles diz: “Ih, meu irmão... Tou sentindo uma coisa aqui... Um jacaré tá comendo minha perna.” O outro diz, calmo; “É mesmo, rapaz? Qual?”  E o primeiro: “Sei lá, véio... jacaré é tudo parecido...”





5 comentários:

Carmelo Ribeiro disse...

Eu tenho um amigo que nasceu em Princesa que diz que cachéte é todo medicamento que vem em uma caixa.

Kelly disse...

Sempre escutei como recurso imagético para a extrema pobreza: "fulano era tão pobre que não tinha um cachete pra tomar". Ou como extremo longínquo: "Era tão longe, tão difícil, que não tinha onde comprar um cachete". Cidade de Pocinhos, Olivedos, por ali.

Paulo Rafael disse...

Aqui em Pernambuco ainda se usa a palavra cachéte, embora muita gente jovem não conheça. Há até um revendedor de medicamentos, desses que visita os médicos, que foi apelidade de Marcelo Cachéte.

Anônimo disse...

Kkkkkkkk muito justo

Anônimo disse...

Kkkkkkk sim, confirmado