Muitos anos atrás, no tempo pré-
Uma vez discutíamos a diferença entre sonho e
realidade. Um cara (infelizmente não copiei e guardei essa postagem) falou que era
sujeito a sonhos incrivelmente detalhados e precisos, nos quais vivia em outro
planeta e era outra pessoa. Além da exatidão (dizia ele) havia a diferença de
tempo. Ele adormecia aqui, em sua casa, sonhava que estava no outro planeta, e
vivia ali durante meses inteiros, trabalhando, agindo, dormindo, acordando, e
depois de meses voltava à vida anterior (esta), acordando de manhã cedo, oito
horas depois de ter adormecido. Si non è
vero è bene trovato.
Lembro disso toda vez que penso no romance de
Raymond Queneau Les fleurs bleues
(1965). Este livro faz um ping-pong entre dois personagens, um na Paris dos
anos 1960, e outro na Idade Média. Os dois sonham alternadamente que são o
outro.
No mundo moderno, a gente acompanha as aventuras de
Cidrolin, um cara meio esquisitão
mas divertido que mora numa balsa ancorada no Sena, tem três filhas (trigêmeas)
e leva uma vida modesta. Toda vez que ele adormece, o livro salta para as
aventuras do Duque de Auge, que tem
seu castelo feudal, é amigo do Rei, vive cercado de nobres, alquimistas,
padres, etc., além de dois cavalos falantes.
De certa forma, é uma alternância entre uma
história mainstream e uma história de
fantasia heróica. Quando o duque adormece, por sua vez, Cidrolin acorda – e
tudo recomeça. E cada um deles comenta com as pessoas em volta que tem sonhado um
sonho contínuo, esquisito, sobre um mundo estranho, etc.
O próprio autor sugere uma comparação com o famoso
apólogo chinês: “O sábio Chuang Tzu sonhava toda noite que era uma borboleta,
até que começou a achar que era na verdade uma borboleta sonhando que era um
filósofo”.
Raymond Queneau pega essa estrutura e cria um
romance divertido, cheio de anacronismos propositais – o Duque de Auge refere-se
o tempo inteiro a objetos, idéias ou palavras que não existiam na época em que
está vivendo. E tem mais: cada vez que o enredo salta de volta para ele, ele e
sua entourage estão num futuro mais
avançado.
O livro começa em 25 de setembro de 1264, mas
alguns capítulos depois o Duque já está em 1439 e usa canhões com pólvora em
suas batalhas; mais à frente ouve falar na queda da Bastilha e se preocupa com
a sorte do seu amigo “Donatien” (=o Marquês de Sade), e assim por diante.
Enquanto isso, Cidrolin trata de casar as filhas,
tocar sua vidinha, beber “essência de funcho” (uma bebida à base de anis) e se
preocupar com um inimigo misterioso que a toda hora está pichando sua cerca com
insultos, obrigando-o a repintar a cerca todas as manhãs.
Les Fleurs Bleues é um desses livros onde o romance
principal (como em James Joyce) é entre o autor e a linguagem. Queneau brinca
com as palavras o tempo inteiro: trocadilhos, grafia fonética, provérbios
parodiados, citações, uma pirotecnia verbal bem trabalhosa de traduzir. Ele é
um dos fundadores do grupo parisiense OuLiPo (“Oficina de Literatura
Potencial”), que já incluiu Ítalo Calvino e Georges Perec.
O livro (que eu saiba) é inédito no Brasil, mas há
uma tradução acadêmica feita por Roberto de Abreu (FAFILCH, USP, 2011): Traduzir Les fleurs bleues, de Raymond
Queneau: o jogo do significante e o humor.
Pode ser acessada aqui (o arquivo traz o texto
francês e a tradução lado a lado, em colunas verticais):
O trabalho de Abreu traduz integralmente o livro, e
é precedido de uma discussão detalhada sobre todas as escolhas, que são sempre
subjetivas. Traduzir Queneau é como traduzir Guimarães Rosa. Para traduzir
palavras inventadas, ou efeitos verbais sonoros, é preciso inventar também.
Queneau é pouco conhecido no Brasil. Aqui já foi
traduzido seu romance mais famoso, Zazie
no Metrô (Rocco, 1985, trad. de Irène Monique Harlek Cubic; Cosac Naify, 1995,
trad. Paulo Werneck), que foi filmado em 1960 por Louis Malle.
E em 1989 o diretor Gabriel Vilela montou o
espetáculo Você Vai Ver O Que Você Vai
Ver, adaptando o livro Exercices de
Style, traduzido no Brasil por Luiz Rezende (Imago, 1995; pode ser acessado
aqui: https://monoskop.org/images/b/b0/Queneau_Raymond_Exercicios_de_estilo.pdf).
O título desse espetáculo, aliás, foi tirado de Les Fleurs Bleues: “vous allez voir ce que vous allez voir” (cap. XV).
Difícil achar aqui no Brasil alguém com quem
comparar a prosa trocadilhesca e meio absurdista desse escritor que era um
erudito brincalhão. Les Fleurs Bleues
lembra um pouco o Campos de Carvalho de O
Púcaro Búlgaro ou o Sérgio Sant’Anna de Confissões
de Ralfo: personagens bidimensionais, quadrinhescos, metidos em empreitadas
cheias de nonsense, ou o Paulo Leminski de Catatau,
na demolição do conceito de História através de uma orgia da linguagem. Talvez
os momentos mais descontraídos e experimentais de Guimarães Rosa, como
“Cara-de-Bronze”.
Les Fleurs Bleues é uma obra de maturidade de Queneau
(1903-1976), que fez parte do grupo surrealista de André Breton, era fã dos
folhetins de Fantômas, dirigiu a
série de História das Literaturas da “Encyclopédie de la Pléiade”, foi letrista
de música popular, escreveu roteiro para Luís Buñuel, traduziu para o francês
Amos Tutuola e Edgar Wallace, foi membro do Colégio de Patafísica e da Academia
Goncourt.
Seu objetivo era talvez o mesmo do alquimista de Les Fleurs Bleues (trad. Roberto de
Abreu):
Entender a linguagem das abelhas, falar a língua dos
Tupinambás sem tê-la aprendido, conversar com uma pessoa a mil léguas de
distância, entender a harmonia das esferas celestes, saber de cor o conteúdo de
mil e três obras, discorrer sobre todas as coisas com pertinência sem ter
jamais estudado.
(Cap. X)
(Raymond Queneau)