Eu fiquei pensando numa idéia para um argumento, podia
ser filme, livro, etc., meio que inspirado no livro O Colecionador (1963) de John Fowles, que foi filmado em 1965 por
William Wyler com o mesmo título.
Pra quem não conhece, é um livro extraordinário (e um
filme bastante bom) onde Frederick Clegg, um sujeito macambúzio,
insignificante, mesquinho, curte uma paixão voyeurística à distância por uma
estudante de Belas Artes que ele vê sempre passar na rua, chamada Miranda.
Um dia, Clegg ganha uma fortuna na loteria, e como não
tem família, vive só, não precisa dar satisfações a ninguém, ele prepara o
porão da casa onde mora, rapta Miranda e a mantém refém, dizendo algo tipo
“você vai ficar presa aqui até se apaixonar por mim”.
Clegg, que ela passa a chamar de “Calibã” (o diário
escrito por ela no cativeiro é uma das partes principais do livro) é o típico
sujeito que hoje se chama “incel”, “celibatário involuntário”, ou, no curto e
grosso, um cara que gostaria de comer gente, mas não come ninguém porque
ninguém suporta ele.
Muito bem. Uma das táticas mais elementares de “brainstorming
criativo” é inverter situações: em vez da família rica que fica pobre, imaginar
uma família pobre que fica rica, ou em vez de um navio onde todo mundo é real e
aparece um fantasma imaginar um navio onde todo mundo é fantasma, e aparece um
cara real.
As possibilidades, como sempre, são infinitas.
Eu me pus a imaginar uma reversada no plot de John
Fowles, e imaginar uma nova Miranda, contemporânea e carioca da gema. Ela é
linda, inteligente, sensível, artística, solteira, politicamente correta, cheia
de entusiasmo pela vida... Ganha uma
herança vultosa e se deixa arrebatar por um sonho: pegar aquele rapaz feioso,
nerdoso, que a segue pela rua e a stalkeia nas redes sociais, e ensinar a ele a
beleza da vida!
Todo ser humano é fundamentalmente bom, acredita ela.
Vamos apostar nas pessoas! Todo mundo só precisa de uma chance, mas uma chance
real, concreta. E a luz prevalecerá!
Não, nada de sexo envolvido. Mas como ela mora sozinha no
casarão que herdou dos pais, e tem um porão super climatizado (onde o falecido
pai tinha seu laboratório fotográfico), e acabou de ganhar uma baba de grana de
herança...
Aqui entra, roteiristicamente, um trecho problemático
porque é preciso devisar uma maneira plausível de fazer Miranda sequestrar o
cara sozinha. Mas dá pra resolver – como ele é praticamente um ermitão, sem
amigos, não darão muito pela sua falta. E ela pode abordá-lo, dizer algo tipo
“apareça lá em casa às 3 da madrugada, sem ser visto, discretamente, e não sabe
a surpresa que o espera...” Qual o nerd misantropo
e donzelão que não morde essa isca?
Ela se assanha toda e começa os preparativos. Por que não fazer uma caridade àquela alma
atormentada, aquele protofascistazinho meio imberbe (Miranda tem 40 anos, é uma
coroaça nos trinques, Calibã tem trinta de ressentimento e cigarros), manietá-lo,
trazê-lo a pão e água (e ocasionais recompensas pavlovianas), dar-lhe umas
lições de moral, de ética pós-moderna, mostrar-lhe o erro dos seus modos, até
que ele desperte, se ilumine por dentro, floresça, desabroche, passe a devorar
com sofreguidão livros de Foucault e poemas de Walt Whitman, descubra as
sutilezas da música de Tom Jobim e o vigor telúrico do Cacuriá de Dona Teté?!
Miranda é pura, é boa, acredita na humanidade. Ela quer
ser uma Anne Frank ao contrário, e para isso atrai Calibã, sequestra-o, deixa-o
trancafiado. Não teme os confrontos a sós: ela faz academia, capoeira e
krav-magá, enquanto que “Frederico” é anoréxico e baixinho.
O filme ou livro reconstituiria os textões verbais com
que ela tenta convencê-lo de que é errado dar de ombros para o desmatamento da
Amazônia ou incentivar o desmantelamento da escola pública. Ela explica a ele
que a Terra não é plana, leva inclusive um globo terrestre (“quer que eu
desenhe?”). Ela diz que ele é um dos responsáveis pelo aquecimento global e
pela concentração de renda nas mãos dos super-ricos.
“Frederico” se recusa terminantemente a ceder numa
vírgula. Insulta-a, chama-a dos piores nomes, diz que a amava quando era à
distância, mas que agora está vendo que ela não passa de uma vagabunda igual a
todas as outras... O papo de todo serial-killer.
Miranda se desespera. As amigas a veem tensa, perguntam o
que é, chamam para um café na livraria preferida. Ela não sai mais de casa: sua
existência virou uma anti-terapia 24 horas por dia.
Aqui eu empanquei pela segunda vez. Conseguirá Miranda
fazer a razão prevalecer sobre o obscurantismo? Vai salvar aquela alma? Ou
conseguirá Frederico pegá-la num vacilo, subjugá-la fisicamente, inverter a
situação, submetê-la a um destino pior que a morte? Ou quem sabe será Miranda
quem vai acabar perdendo as estribeiras e dizendo algo na linha de “pois você
agora vai provar do seu próprio remédio”, manietando-o em seguida, abrindo a
gaveta dos instrumentos, enquanto a câmera recua horrorizada degraus acima, passando
a porta que se abre e depois se fecha, saindo para aquela rua tranquila do
Cosme Velho onde madames e rapazes passeiam cachorros e ninguém é capaz de
adivinhar os conflitos íntimos que rolam nos porões deste Brasilzão de todos nós.
Um comentário:
Empancar, é muito bom ;).
No Cosme Velho do Bruxo, ótima ideia.
Abraços, Paulo Mendes, Recife/PE
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