A veracidade aos fatos históricos me obriga a registrar
que apesar desse panteão de nomes consagrados, o melhor momento do dia de
trabalho era logo cedinho, sete da manhã, quando o jornal já estava na rua e o
pessoal da oficina (Romão, Boní, etc.) começava a desmontar as páginas de ferro
com as linhas de chumbo.
A redação (que ficava em cima, no primeiro andar) ainda
estava vazia, e uma bola de papel-jornal fortemente amarrada com barbante
servia para que eu, Mauro Ronaldo e Severino Brasil realizássemos ferozes
campeonatos de barra-a-barra entre as mesas vazias e os arquivos de jornais que
iam do piso ao teto.
Foi em meados dessa década que Orlando inventou de se
candidatar a vereador, arranjou um jipe, e era visto chispando o dia inteiro ao
volante, pelas ruas de Campina. a cabeleira ao vento. Não foi eleito, e
continuou assinando ponto no Café São Braz, onde todo mundo até hoje passa o
dia falando de três assuntos cruciais: política, futebol e a vida alheia.
Dessas conversas intermináveis surgiu o projeto do livro Zé Limeira, Poeta do Absurdo, que lhe
deu fama nacional e alçou o repentista da Serra do Teixeira ao panteão
mitológico do Nordeste, ao lado de Lampião, Padre Cícero e Luiz Gonzaga.
Durante os próximos séculos nossos netos e bisnetos
continuarão discutindo se a maioria dos versos que aparecem naquele livro foram
mesmo criados por Zé Limeira, ou se o foram por uma plêiade de poetas e boêmios
que circulavam entre os poucos metros que separavam a Rádio Borborema, o Café
São Braz e a Sorveteria Flórida.
Segundo meu pai (grande amigo de Orlando) o passatempo
ali era inventar versos “zelimeirianos” para provocar gargalhadas, e muitas
dessas inocentes contrafações foram se agregando à lenda e acabaram entrando no
livro, como imigrantes ilegais. Não importa. Às vezes, mais que a verdade
histórica, o que vale é o pulsar do espírito da lenda. Publique-se a lenda.
Já tive copiados à mão sonetos fesceninos de Orlando, que
não reproduzo aqui porque não sei onde estão, e talvez para não chocar o
espírito politicamente correto que governa com mão de ferro os costumes de hoje.
Mas a lenda de Orlando é mais polpuda de versos do que a
de Zé Limeira. Há anos digo que algumas de suas improvisações poéticas deveriam
ser reunidas em livro. Estão espalhadas por aí, pela internet e pela memória
alheia. Um livro não garante a imortalidade, mas um Poemas Reunidos de Orlando Tejo seria pretexto para muitas noitadas
de coquetéis e lembranças boas.
Como a dos versos que ele, apologista das cantorias de
viola, dedicou a Lourival Batista, o Louro do Pajeú (1915-1992), e a seu
parceiro Severino Pinto, o Pinto do Monteiro (1895-1990).
Os dois repentistas foram amigos de coração e
antagonistas da viola por mais de meio século de embates memoráveis. No
Nordeste inteiro, em bares, feiras, residências, fazendas, terraços, as pessoas
se juntavam para vê-los disputando quem fazia o verso mais inspirado e quem
dava alfinetadas mais agudas no outro.
No Instituto Lourival Batista, em São José do Egito (PE),
há uma parede onde está imortalizado o poema de Orlando Tejo sobre essa dupla
de gênio:
das cantorias-tesouro
do gigante que foi Pinto,
do uirapuru que foi Louro.
Era uma graça, um estouro
ouvir em qualquer recinto
os trocadilhos de Louro
os desconcertos de Pinto.
Tal qual no Bar do Faminto,
do Pátio do Matadouro,
quando Louro aceitou Pinto
e Pinto abençoou Louro.
Mas no Bar Rosa de Ouro
houve um encontro distinto
Pinto elogiando Louro,
Louro chaleirando Pinto.
Jamais ficará extinto
o meu prazer de ouvir Louro
querendo derrubar Pinto,
Pinto brincando com Louro.
No Bar Casaca-de-Couro
vi o maior labirinto:
Pinto depenando Louro
e Louro esganando Pinto. (...)
O poema inteiro, que é muito longo, pode ser lido aqui,
no blog Cantigas e Cantos, de Gilberto Lopes:
Outra história orlandiana impagável é contada pelos seus
amigos de Brasília, onde ele foi funcionário da Câmara Federal. Apertado de
grana, precisou com urgência urgentíssima de um dinheiro emprestado. Alguém lhe
disse que procurasse um tal de Canindé, que poderia adiantar-lhe os trinta mil
cruzeiros de que precisava para cobrir alguns cheques.
Orlando passou o dia esperando uma resposta de Canindé,
que na verdade era apenas o contato com os agiotas. Em desespero, sentou-se à
mesa do seu amigo, o escritor Luiz Berto (autor do igualmente lendário Romance da Besta Fubana) e produziu oito
décimas implacáveis de ofensas e doestos contra o indefeso ausente:
(...) O cabra fuma e não traga
faz do crime o seu idílio!
Onde está Flávio Marcílio
que não demite esta praga?
Ao menos dava-se a vaga
pra um sujeito de fé,
já que esse indivíduo é
um tratante e delinqüente!
Haja chumbo grosso e quente
no rabo de Canindé!
Por capricho do destino
de Satanás ou Deus Brama,
o bicho também se chama
coisa e tal e Tolentino;
doido, avarento e mofino,
não conhece a Santa Sé,
faz da cola o seu rapé,
vive da desgraça alheia,
devia estar na cadeia
esse tal de Canindé! (...)
Eis senão quando toca o telefone. É Canindé, com o
dinheiro liberado, pronto para ser entregue! Comemorações, abraços efusivos, e
Orlando senta-se de novo à mesa, pega pena e papel, e produz mais oito estrofes
neste novo teor:
Um
sujeito despeitado,
desses
de baixa maré,
inventou
que Canindé
é um
canalha safado.
Eu
fiquei preocupado
com a
informação até,
porém
não perdi a fé
em
quem merece louvores…
E haja
palmas e haja flores
na
fronte de Canindé.
Tenho
dito e sustentado
(todo
mundo sabe disso)
que na
Câmara, esse cortiço,
há um
cidadão honrado,
pai de
família extremado,
homem
de bem e de fé!
O Papa
já disse até
que há
no torrão brasileiro
Padre
Cícero em Juazeiro
e em
Brasília, Canindé.
Sei
que o Papa tem razão,
mas
ninguém quer saber disto.
Se já
falaram de Cristo,
que se
dirá de um cristão?
Porém
a fofoca não
atinge
um homem de fé.
e se
eu descobrir quem é,
meto a
mão no pé do ouvido
do
sem-vergonha enxerido
que
falar de Canindé! (...)
A crônica de Luiz Berto, e o texto completo das duas
séries de estrofes, estão aqui, no blog da União Brasileira de Escritores / RN:
É a poesia. Muita gente lê um poema e se pergunta:
Isto é verdade? Isto é mentira? O poeta é um fingidor? O leitor é um hipócrita?
Que valor pode ter um texto assim cru, direto, concreto, vazado em meras palavras?
Os dois poemas de Orlando sobre Canindé mostram a verdade
do poeta, qualquer poeta, que só tem a obrigação de ser fiel àquilo que no
momento da escrita lhe arrebata o espírito. O poeta olha para dentro de si ou
para o mundo à sua volta e relata o que vê, o que sente, o que o encandeia com
sua força. O que ele escreve não é verdadeiro nem mentiroso: é apenas real.
Era assim Orlando, boêmio que largou a bebida mas não as
noitadas, poeta que nunca largou a poesia, e que dias atrás decolou para o
Outro Mundo e não nos largou, não nos largará em tempo algum. Concretizou agora
os versos de seu alter ego Zé
Limeira:
Se um dia eu fosse chamado
pra cantar no Céu, eu ia.
3 comentários:
Espetacular !! Grande texto sobre uma lenda.
Beleza, Bráulio... beleza
Zé Limeira foi Rei do Universo
Emanando seus cantos do Teixeira
Que faziam tremer a Terra inteira
Explodindo uma estrela a cada Verso.
Cada verso do vate estava imerso
No inverso daquilo que dizia,
Numa gramatical pornografia
Que mostrava as entranhas do sentido
Ocultado no oco do escondido
Da eterna e fugaz Filosomia.
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