(Vou dar continuidade ao desafio que me foi feito via Facebook por Toinho Castro e Mario Bag: postar dez discos que a gente ouviu até a agulha furar o vinil, e continua ouvindo até hoje.)
Este é sem dúvida um dos álbuns que mais escutei durante minha vida inteira, e ele tem além disso uma peculiaridade interessante: é um dos raríssimos álbuns cujas letras eu já sabia quase de cor antes de ouvir pela primeira vez.
Em 1970 eu estudava em Belo Horizonte e mantinha uma
correspondência cerrada com os irmãos Jakson (“Son”) e Marcos Agra, meus
colegas do Cineclube de Campina Grande. Son era um desses caras que quando se
tornam fãs de algo tornam-se verdadeiros missionários, tentando batizar e
converter todo mundo.
Ele descobriu esse LP do bardo escocês Donovan, For Little Ones, e sua vida dividiu-se
em antes e depois. (Nada de mais: com ele, isso acontecia todo mês.) Copiou à
mão todas as letras e mandou para mim, ameaçando-me de ferro em brasa e chumbo
derretido se na minhas férias em Campina eu não ouvisse o disco e concordasse
com ele.
Concordei. O que fazer? O disco de Donovan é, ao que se
diz, um disco de canções infantis (“Para os Pequeninos”). Ao que parece, foi
lançado em álbum duplo com outro título, A
Gift From a Flower to a Garden, que conheço pouco. Mas são canções infantis
para crianças britânicas, que são um universo totalmente diferente do mundo
infantil brasileiro. São canções de melodias nostálgicas, belas, recursivas. Versos
de grande beleza poética escandidos por uma voz de dicção perfeita (dava para
entender quase tudo que era cantado!). Um violão dedilhado que passei anos
tentando imitar, e floreios magníficos de uma flauta.
As letras falam de uma viúva na praia esperando a volta
de um marinheiro, de um músico ambulante que anda com um macaquinho dançarino,
de uma cigana que passa por uma vila e a deixa enfeitiçada, de um maturalista
que volta da praia com os bolsos cheios de conchas. São pequenas vinhetas, com
imagens visuais fortes, que têm de fato um clima infantil, no sentido de que
sugerem um mundo meio de fantasia, de encantamento, a partir de paisagens e
personagens reais.
Aqui, links para algumas dessas canções:
“Widow
With Shawl (A Portrait)”:
“The
Enchanted Gypsy”:
“Epistle
to Derroll”:
“The
Lullaby of Spring”:
The “Starfish-on-the-Toast”:
Donovan tem discos até melhores do que este, como Mellow Yellow, um disco pop, londrino,
moderno; ou Celtic Rock, com banda
mais pesada. Ele é um excelente cantor, mas teve o azar de ser contemporâneo de
Bob Dylan e ser sugerido pela imprensa como “o Dylan britânico”. Os dylanmaníacos,
para quem Dylan não é um cantor e sim uma entidade acima do Bem e do Mal, veem
Donovan como “aquele inglês chato” que apareceu no hotel de Dylan durante a
turnê londrina.
For Little Ones
faz uma ponte muito interessante entre o rock britânico e a literatura infantil
britânica, uma das melhores do mundo, ou pelo menos uma das mais influentes. Ser
criança na Inglaterra, um país invernal e reprimido, não devia ser fácil
naquela época. As escolas inglesas eram um pesadelo a que muita gente não
conseguia sobreviver psiquicamente. Basta ler os relatos autobiográficos de
dezenas de autores (Roald Dahl, George Orwell em Books vs. Cigarettes, e tantos outros). Uma instituição onde o bullying (de chicote em punho) era
oficializado.
Em Revolution In
The Head (1994), Ian MacDonald observa que um dos discos mais importantes
dos Beatles, o compacto contendo “Penny Lane” / “Strawberry Fields Forever”
(1966), mostra McCartney e Lennon recorrendo (cada um ao seu modo) às
lembranças de infância (que brotariam novamente em várias faixas de Sgt. Pepper’s (1967). Diz ele (p.
172-173):
Este segundo aspecto da canção [SFF] inaugura para todos os efeitos o espírito “pop-pastoral” inglês, explorado
no final dos anos 1960 por grupos como Pink Floyd, Traffic, Family e Fairport
Convention.
“Pastoral”, no caso, não tem conotação religiosa, e sim
de evocação a uma vida rural idílica, junto à natureza; um paraíso no campo,
longe das multidões enlouquecedoras, longe da frieza e do cinismo da vida
urbana. Seria algo parecido com o nosso Arcadismo poético. Ou, mais
modernamente, com o espírito “eu quero uma casa no campo”.
Mais significativo, no entanto, era o ponto de vista infantil adotado
pela canção – porque o verdadeiro tema da psicodelia inglesa não era nem o amor
nem as drogas, mas uma nostalgia pela visão inocente das crianças.
Rapazes que aos dez anos frequentavam a escola de terno e
gravata descobriam-se de repente com o direito de tirar a roupa e dançar na
grama de um parque, ao sol do verão. A tradicional família britânica via nisso
uma ameaça permanente de suruba, porque ao que parece as famílias tradicionais
não pensam noutra coisa. Ouso dizer, pelos muitos relatos de época que já li,
que as surubas ou mesmo as trepadinhas dois-a-dois eram relativamente poucas.
Nudez para essa turma era uma espécie de libertação angelical.
O próprio MacDonald lembra outras bandas que conseguiram
reproduzir musicalmente esse universo meio Alice
in Wonderland da psicodelia inglesa, entre elas a Incredible String Band,
cuja coletânea dupla Relics eu talvez
acabe incluindo e comentando nesta lista.
Donovan era um bardo tão inimitável quanto Bob Dylan, e a
única coisa que os dois tinham em comum era a riqueza poética e a conexão
prfunda com a música folk onde
bebiam. Dylan era sem dúvida um poeta com territórios poéticos mais variados;
mas Donovan, na sua faixa mais estreita, era igualmente imbatível.
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