Ursula Le Guin faleceu alguns dias atrás, aos 88 anos. Por
sincronicidade, eu estava em plena leitura da trilogia inicial do seu ciclo sobre
o Arquipélago de Terramar (“Earthsea”), ciclo do qual eu só conhecia algumas histórias
mais recentes.
Le Guin era uma dama de calma sabedoria e inexcedível
elegância, mas ela própria não estava (nem precisava estar) acima de certos
ciúmes e certas rivalidades literárias. Quando alguém se referia ao ciclo de
Harry Potter e Hogwarts, ela dava um muxoxo e dizia: “Bem que aquela moça
poderia ter dito de quem pegou a idéia de uma Escola para Magos”.
A idéia, claro, é a que ela criou (com grande impacto
junto à crítica e aos leitores) nos três primeiros volumes de sua série: A Wizard of Earthsea (1968), The Tombs of Atuan (1971) e The Farthest Shore (1972). A Ilha de Roke, governada pelos Nove
Mestres da magia.
Os três romances foram escritos para o público juvenil,
mas pertencem àquela faixa que qualquer leitor adulto pode ler com prazer e
proveito. Uma prosa límpida, rica, encantatória. São três histórias com
protagonistas adolescentes.
No primeiro livro, o garoto Ged, ou “Sparrowhawk”
demonstra talento para a magia e é encaminhado para a Escola dos Magos, na ilha
de Roke. Ali ele acaba liberando, por imprudência e hubris, uma força sobrenatural que lhe caberá enfrentar e dominar
no desfecho.
No segundo, Arha é uma menina sacerdotisa de um culto
antiquíssimo na ilha de Atuan, numa ordem composta apenas por mulheres e
eunucos. Uma de suas atribuições é ser capaz de se orientar, na treva total, no
interior do enorme labirinto subterrâneo que existe por baixo do templo – e
onde um dia, inesperadamente, ela descobre a presença de um ladrão que desperta
sua ira e depois sua curiosidade.
No terceiro livro, um jovem príncipe é enviado para a
ilha de Roke para se queixar aos Nove Mestres de que a magia, a cultura e a
memória estão desaparecendo em muitas ilhas do Arquipélago. E cabe-lhe
acompanhar o Arqui-Mago na caçada ao inimigo invisível que está apagando a
memória cultural de Terramar.
A série está sendo publicada no Brasil pela Editora
Arqueiro (SP), que já lançou os dois primeiros volumes, com tradução de Ana
Resende.
Ursula Le Guin pertence à escola dos autores de Fantasia
para quem a magia não é um simples “abracadabra” capaz de produzir qualquer
resultado. Ela trabalha na linha da hard
fantasy: a magia precisa ter regras, ter limitações, ter uma economia
interna tal como tem a Ciência, onde nada pode ser feito “de graça”.
Criar um efeito mágico produz um desgaste na energia do
mago. Ele pode criar um vento artificial para soprar a vela do seu barco e
navegar com mais rapidez, ou pode evitar que um prédio desmorone sobre sua
cabeça durante um terremoto; mas com isso gasta uma espécie de combustível, não
pode manter esse esforço indefinidamente. Não existe almoço grátis no mundo da
magia.
A magia no Arquipélago de Terramar (tal como o futuro no
mundo cyberpunk!) também não está distribuída por igual.
Os Poderes Antigos não conseguem cruzar o mar, e cada um deles está preso
a uma ilha, a um certo local, a uma caverna ou a uma nascente de água. (Wizard, cap. 7; estas traduções são
minhas)
“Há encantamentos eficazes que eu aprendi em Roke mas que não funcionam
aqui, ou funcionam desordenadamente. E também há encantamentos daqui que nunca
estudei em Roke. Cada terra tem seus próprios poderes, e quanto mais a gente se
afasta do centro do arquipélago menos é capaz de prever essas forças e o modo
de controlá-las.” (Wizard, cap.
9)
É uma magia que extrai seu poder do verdadeiro nome de
todas as coisas e todos os seres, nome que só os magos são capazes de descobrir
e controlar. Controlar o nome das coisas é controlar as coisas do mundo.
Saber os nomes é o meu trabalho. A minha arte. Para produzir a mágica
de alguma coisa, é preciso descobrir seu verdadeiro nome. Na terra onde eu vivo,
mantemos nossos verdadeiros nomes escondidos durante a vida inteira, diante de
todos a não ser aqueles em quem temos total confiança. Porque num nome existe
grande poder, e grande perigo. Huve uma época, no princípio dos tempos, quando
Segoy fez as ilhas de Terramar se erguerem das profundezas do oceano, em que
todas as coisas portavam seus verdadeiros nomes. E todo o ofício da magia, da
feitiçaria, se baseia em reaprender, em lembrar, essa antiga e verdadeira
linguagem do Fazer. Há encantamentos a serem aprendidos, claro, modo de usar as
palavras; e o mago deve saber também quais são as consequências. Mas o que um
mago leva a vida inteira fazendo é descobrir quais os nomes verdadeiros das
coisas, e como usar os nomes dessas coisas.” (Atuan, cap. 9)
Outra presença forte na trilogia é a dos dragões, que em
Le Guin não são meros monstros: são criaturas antiquíssimas, dotadas de
pensamento, linguagem e recursos mágicos próprios. Como se fossem velhos
feiticeiros metamorfoseados em serpentes de fogo.
Dizia Ursula que as pessoas que não acreditam em dragões
acabam sendo devoradas por eles, só que de dentro para fora. Seus dragões são
ferozes e indecifráveis; ora amistosos, ora predadores. Nem todos os Magos são
capazes de dialogar com eles; os que o conseguem são chamados de Dragonlords.
Quando o sol começou a brilhar sobre a
neblina do Leste, as minúsculas partículas douradas que Arren tinha visto à
distância pareceram cintilar, como ouro em pó arremessado sobre as águas, ou
grãos de poeira num facho de luz do sol. E então Arren percebeu que eram
dragões.
O barco chegou mais perto das ilhas e
Arren viu que os dragões flutuavam no ar e descreviam círculos no vento
matinal, e seu coração saltou junto com eles com alegria, com uma alegria cuja
plenitude chegava a doer. Todo a glória da mortalidade estava naquele voo. A
beleza dos dragões era feita de uma força terrível, com uma selvageria sem
limites e a dádiva da razão, porque eles eram criaturas pensantes, eram dotados
da fala, e de uma sabedoria ancestral: nos padrões do seu voo havia uma
sincronização deliberada e feroz.
Arren ficou em silêncio, mas pensou: “Eu
não ligo mais para o que acontecer de agora em diante: eu vi o voo dos dragões
no vento da aurora.”
(Farthest Shore, cap. 10)
Num ótimo artigo sobre o ciclo de Terramar, David Mitchell
(o autor de Cloud Atlas) lembra que
num romance de fantasia heróica, como são estes de Ursula Le Guin, o mais
difícil é equilibrar o estilo literário e a voz narrativa. “Escrever fantasia
de qualidade,” diz ele, “é muito difícil, porque é um terreno saturado de clichês
verbais.” É preciso evitar no leitor a sensação de estar preso dentro de um
parque temático, e por outro lado evitar uma linguagem tipicamente
contemporânea. Uma história de fantasia pode vir abaixo por inteiro se um
personagem disser algo como “maneiro demais!”.
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