sábado, 23 de dezembro de 2017

4298) Um poema de John Ashbery (23.12.2017)




(Morreu pouco tempo atrás nos Estados Unidos o poeta John Ashbery, que mereceu longos e elogiosos obituários. Na época o nome não me despertou nenhuma lembrança. Agora, remexendo em arquivos velhos, encontrei este poema que li e salvei há alguns anos, movido por alguma ressonância autobiográfica. É um belo poema sobre o processo criativo literário, familiar a todo escritor que de vez em quando vai à janela. Vai ele aqui com tradução minha. O original é de 1956, do livro “Some Trees”.)


O MANUAL DE INSTRUÇÕES
(John Ashbery)

Sentado à janela do meu prédio, olhando para fora,
penso como seria bom se não tivesse de redigir
um Manual de Instruções a respeito das utilidades de um novo metal.

Olho para a rua lá embaixo e vejo as pessoas,
cada qual passeando cheia de paz interior,
e sinto inveja delas. Tão distantes de mim!
Nenhuma delas tem que se preocupar
com a entrega do Manual no prazo combinado.

E, bem ao meu jeito, começo a sonhar,
apoiando os cotovelos na mesa
e me soerguendo um pouco para olhar pela janela,
e sonho com Guadalajara! A cidade das flores cor de rosa!
A cidade que eu mais desejo conhecer, e nunca conheci, no México!
Mas imagino vê-la agora, sob a pressão de ter que escrever o Manual de Instruções,
vejo a praça pública da cidade, seu coreto cheio de adornos!
A banda está tocando Scheherazade de Rimsky-Korsakov,
e em redor do coreto as garotas das flores
seguram flores cor de rosa e de limão,
cada uma tão atraente em seu vestido de listas em azul-e-rosa (oh! cada tom de rosa e azul!)
e ali perto a barraquinha branca onde mulheres de verde
distribuem frutas verdes e amarelas.

Os casais desfilam: todos estão em clima de feriado.
Primeiro, puxando o desfile, vem um sujeito elegante
vestido de azul escuro. Na cabeça traz um chapéu branco
e exibe um bigode, que foi aparado para aquela ocasião.
Sua querida, sua esposa, é jovem e bela; o xale dela é vermelho, cor-de-rosa e branco.
Suas sandálias são de couro, ao estilo americano,
e ela traz um leque, porque é encabulada, e não quer que a multidão veja seu rosto o tempo inteiro.

Mas todo mundo está tão ocupado, com suas esposas ou suas amadas,
que duvido que notem a esposa do homem de bigode.
E aí vêm os rapazes! Vêm saltando e jogando coisas na calçada
que é feita de ladrilhos cinza. Um deles, um pouco mais velho, traz um palito entre os dentes.
É mais silencioso do que o resto, e finge não reparar nas moças bonitas de vestido branco.
Mas os amigos dele reparam, e gritam provocações para as garotas risonhas.

E no entanto isso tudo vai acabar,
quando os anos ficarem mais profundos,
e o amor os trouxer ao desfile por outros motivos.

Mas acabei perdendo de vista o rapaz com o palito.
Esperem! Ali está ele, do outro lado do coreto,
separado dos amigos, envolvido na conversa com uma garota
de catorze ou quinze anos. Tento escutar o que estão dizendo
mas parece que estão apenas murmurando coisas – palavras tímidas de amor, provavelmente.
Ela é um pouco mais alta do que ele, e abaixa os olhos com calma para os olhos dele, tão sinceros.
Ela está de branco. A brisa agita seus cabelos longos e finos de encontro ao rosto moreno.
Ela está visivelmente apaixonada. O rapaz, o rapaz do palito, está apaixonado também:
os olhos dele o demonstram. Afastando minha visão deste casal
vejo que houve agora um intervalo no concerto.
Os transeuntes estão descansando, tomando refrigerantes no canudinho
(o refrigerante está numa grande jarra de vidro, e quem o serve é uma senhora de azul escuro),
e os músicos se misturam a eles, com seus uniformes brancos, e conversam,
sobre o clima, talvez, ou sobre como as crianças estão se saindo no colégio.

Vamos aproveitar esta oportunidade
e entrar na ponta dos pés nesta ruazinha transversal.
Aqui vocês podem ver uma daquelas casinhas brancas com enfeites verdes
que são tão populares aqui. Olhem! Bem que eu lhes disse.
Dentro está mais fresco à sombra, mas o pátio está banhado de sol.
Uma mulher idosa de vestido cinza está sentada, abanando-se com um leque de folha de palmeiras.
Ela nos convida a entrar no pátio, e nos oferece um refresco para beber.

“Meu filho está na Cidade do México,” diz ela. “Ele os receberia também se estivesse aqui. Mas ele trabalha num Banco, lá.
Olhe, este aqui é o retrato dele.”

E o rapaz de pele morena com dentes de pérola nos sorri naquela velha moldura de couro.
Agradecemos a ela sua hospitalidade, porque está ficando tarde
e precisamos olhar melhor a cidade, antes de irmos embora,
olhar a cidade de cima de um lugar bem alto.

A torre daquela igreja pode servir – aquela em cor de rosa desbotada, de encontro ao azul vívido do céu. Entramos lentamente.

O porteiro, de uniforme marrom e cinza, pergunta há quanto tempo estamos na cidade, e se estamos gostando.
A filha dele varre os degraus, e nos cumprimenta quando passamos rumo à torre.

Logo chegamos ao topo, e a teia quadriculada da cidade se estende aos nossos olhos.
Ali está o bairro nobre, com suas casas rosa e branco, e seus terraços cheios de plantas se esboroando.
Ali o bairro mais pobre, onde as casas são azul escuro.
Ali o mercado, onde os homens vendem chapéus e espantam moscas,
e ali a biblioteca pública, pintada em tons de verde claro e bege.

Olhem! Lá está a praça de onde viemos, onde o pessoal passeia.
Agora há menos gente por lá, agora que o calor do sol ficou mais forte,
mas aquele rapaz e a garota ainda conversam junto ao coreto.

E aquela é a casa da pequena senhora—
lá está ela no pátio, se abanando.

Como foi breve, mas como foi completa, a nossa experiência de Guadalajara!
Vimos o amor entre os jovens, entre os casados, e o amor de uma mãe idosa pelo filho.
Ouvimos a música, provamos as bebidas, olhamos as casas coloridas.
O que nos resta a fazer, senão ficar? Mas isto não é possível.

E quando a derradeira brisa refresca o topo da velha torre,
eu giro a cabeça, e os meus olhos
se voltam para o Manual de Instruções – que me fez sonhar com Guadalajara.