Ficamos agora sem o nosso
negro gato, a nossa pérola negra, a voz
que embalou os sonhos de muitas juventudes. Ainda que não tivesse embalado os
sonhos de milhões, embalou os meus, e a perda aqui dentro do cofre dos afetos
seria a mesma. Resta o consolo de que herdamos a música, pois a obra permanece.
Consolozinho furreca esse. Puído de tanto uso a cada perda.
Durante o dia de hoje vi
nas redes sociais desabafos e lamentos e risadas de pessoas que tocaram com
Melodia, beberam com Melodia, excursionaram com Melodia; todos têm, é claro,
episódios hilários ou tocantes para contar. Eu não o conheci pessoalmente, a
não ser no palco, nos muitos shows seus que assisti ao longo da vida, primeiro
pelo Nordeste afora, e depois no Rio de Janeiro. Não sei avaliar a pessoa. Só
tive acesso ao personagem.
Luiz Melodia foi a essência
concentrada de uma faixa da música carioca revelada para nós brasileiros a partir
dos anos 1960. Um grupo de negros talentosíssimos e instáveis que inclui Jorge Ben,
Tim Maia, Jards Macalé e muitos outros. Cada um com perfil musical próprio, mas
todos trazendo aquela medula de samba que todo mundo conhece tão bem. Para
alienígenas como eu, que não obstante a alienação amam o samba, o samba é uma
roupa. Para eles é uma pele. Se lhes arrancarem todas as roupas que levam ao
palco (soul, pop, blues, o que quiserem) é o samba que os recobre e os mantém
inteiros.
Todos estes se projetaram
um pouco aproveitando as ondas sucessivas da Jovem Guarda e do Tropicalismo.
Movimentos de jovens que ajudaram os jovens sambistas daquele tempo a aceitar com
curiosidade e sem culpa os sons eletrificados da época em que subiram nos seus
primeiros palcos.
O Jorge Ben que trouxe em
1963 seu Samba Esquema Novo já estava
pouco depois sendo escalado pela imprensa nos times informais da Jovem Guarda,
e chegaria depois a sua fórmula imbatível que eu nem sei mais como se chama, na
salada de rótulos de hoje. Será “samba rock”? Não importa; me lembro de uma
entrevista onde ele dizia que o seu segredo era ter na Banda do Zé Pretinho dois
baixos elétricos.
Tim Maia não se encaixou
na Jovem Guarda mas deu-lhe uma massacrante volta-por-cima quando voltou dos
EUA com seus primeiros sucessos esmagadores embebidos no soul, na percussão balançante, nos metais implacáveis e alegres da
Vitória Régia.
Jards Macalé foi o mais
tropicalista deste grupo, nas parcerias, nas canções gravadas, nas posturas
conceituais desconcertantes e desabusadas – sem deixar de ser um eterno lobo
solitário, um bloco do eu-sozinho sem similar na música da pátria.
E Melodia passeava pelo
blues, pelo pop, pela canção romântica – da qual ele tinha um modo também
só-seu de drenar o excesso de água com açúcar e aumentar a voltagem de
tragédia. Canção de amor na voz de Melodia era sempre uma canção de amor
durante um bombardeio.
Em parte talvez por aquela
mágoa ancestral que administra a alegria momentânea de tantos brasileiros. O
samba que, como viriam a lembrar depois os pais do Tropicalismo, é o pai do
prazer e o filho da dor. As canções de amor que Luiz Melodia pescava nos
repertórios mais improváveis estão sempre contaminadas por essa tristeza imensa
que os olhos dele mostravam em cada close, mesmo quando o verso era brincalhão
ou otimista.
Era o nosso negro gato,
dono do pedaço, player com sete
vidas, malandro de dar drible em bala. E ao mesmo tempo alguém que parecia
trazer nas costas o peso de um milênio de escravidão e a influência má dos
signos do Zodíaco. E uma angústia profunda que conferia vastidão ao verso mais
singelo que cantasse.
Sempre cercado por músicos
de talento que achavam um privilégio dialogar com um voz como aquela, Melodia
era como aquele ator de teatro que pega meia dúzia de falas desenxabidas de um
autor sem inspiração e diz (respeitando cada vírgula delas) caminhões de
subtexto. O segredo é a voz, que colore esses versos, tanto os de alta voltagem
poética quanto os versinhos tapa-buraco das canções pop. Agarra todos – e eleva
todos ao lugar de onde soa, seja o alto da montanha ou o fundo-do-poço do
coração.
Melodia era, como Augusto,
um monstro de escuridão e rutilância. Capaz de cantar a alegria do nascer do
sol:
“Juízo
Final” (Nelson Cavaquinho e Élcio Soares)
E de cantar a paz do cair
da noite:
“Suave
é a Noite” (Paul Francis Webster e Sammy Fain, versão de Nazareno de
Brito) :
De ir ao fundo do porão
com o poeta que desceu aos infernos e sair dali brincando com as próprias
cicatrizes:
“Que
Loucura” (Sérgio Sampaio)
Era uma voz de quem foi lá
no fim do futuro, viu tudo – e jurou não contar nada quando voltasse. As
canções falam do presente, da vidinha boa e boba de todo mundo a cada dia. Era
somente o olhar quem revelava o que ele viu, e a voz que nos consolava, como se
dissesse: “Não se preocupe, não aconteceu ainda”.
3 comentários:
Clap! Clap! Clap! Belíssimo!
A música não acaba, Melodia nunca.
Um grande poeta, acima de tudo.
"Para alienígenas como eu, que não obstante a alienação amam o samba, o samba é uma roupa. Para eles é uma pele." Rapaz, por textos como este que não consigo desconectar da internet. Obrigado, Braulio.
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