Não sei que idade eu tinha. Geralmente localizo o ano de minhas experiências de antes dos 11 anos em função da casa onde morávamos, porque quase todo ano a gente se mudava: Rua Padre Ibiapina, Rua do Lapa, Rua Solon de Lucena, Rua Miguel Couto, Vila dos Motoristas, Rua Estilac Leal no Alto Branco... Pronto: este último endereço foi a famosa “casa própria” onde meus pais se fixaram. Houve outras mudanças depois, mas entre os quatro e os onze anos eu me localizo tendo como bússola aqueles endereços.
Não sei onde eu morava quando vi o show de Dalva de
Oliveira, a Rainha do Rádio, cujo centenário comemoramos este ano.
Sei que foi à noite, num palanque armado na Praça da Bandeira (de costas
para o Cine Capitólio), bem em frente ao Correio. Lembro da multidão, não tão
grande que me impedisse de ver o palco à distância. Lembro da mulher loura
vestida de preto, e minha mãe, segurando minha mão e comentando com alguém:
“Olha a volta de ouro no pescoço dela, que coisa linda!”. E lembro da voz.
Eu já sabia que ela era Dalva de Oliveira, aquela voz
límpida, sofrida, angustiada, que derramava seus dramas pessoais pela Rádio
Borborema, a Rádio Cariri e a Rádio Caturité. Para não falar nas rádios do Rio
de Janeiro, que meu pai sintonizava com presteza por entre os chiados da
estática, e de onde a mesma mulher brotava, límpida, torturada.
Não conheço quem possa resistir a um tango que começa
assim:
Tenho o coração feito em
pedaços...
Trago esfarrapada a alma inteira...
O tango é “Cristal”, a única música que me lembro de ter
ouvido no show, porque já a conhecia do rádio: “Mais frágil que o cristal.. foi o amor... nosso amor...”
“Cristal”, gravação original:
A educação sentimental de minha geração indefesa foi no
meio das catástrofes morais e afetivas de intérpretes como Dalva, Ângela Maria,
Núbia Lafayette, Maysa e outras, pelo lado feminino, e Nelson Gonçalves,
Altemar Dutra, Anísio Silva, Orlando Silva, pelo lado masculino.
Muita tinta já deve ter corrido sobre a influência das
letras de música no comportamento afetivo dos jovens. Se eu fosse escolher,
diria que Nelson Gonçalves e Dalva de Oliveira marcaram para os da minha
geração a descoberta do amor, do sexo, da relação entre homens e mulheres, as
noções de pecado, de fidelidade, de dominação, de solidão, de gozo e de
sofrimento.
As canções do repertório de Dalva reproduzem um universo
de paixões extremadas, de desejos intensos, de uma sensualidade que chega quase
ao transtorno mental, de noções brutais de posse e de traição. Era um mundo
moralmente muito repressor e transgressor – porque essas duas funções são
proporcionais. Luís Buñuel dizia que ninguém gozava com mais força do que os
espanhóis, porque eram o povo mais reprimido do mundo.
A voz de Dalva é a voz de um arquétipo feminino capaz de
rasgar o próprio peito e ofertar o coração em chamas. Privadas de tantos
caminhos, as mulheres daquele tempo faziam desaguar na paixão uma energia
“capaz de mover milhões de mundos”, como dizia Augusto dos Anjos.
Num tempo de severa censura, não somente nas letras de
músicas, essa sensualidade projetava sua potência de ar comprimido nas alusões,
nas indiretas, nos subentendidos. Ela cantava:
Que será
da minha vida sem o teu amor,
da minha boca sem os beijos
teus
da minha alma sem o teu calor?
Que será
da luz difusa do abajur lilás
que nunca mais irá iluminar
outras noites iguais?
(Marino Pinto & Mauro
Rossi)
O que acontecia naquelas noites ficava a cargo da
imaginação dos(as) ouvintes, que não precisava de mais que uma fagulha para
pegar fogo. A cantora modulava a voz acompanhando as sugestões da letra, ora
apequeninando-se em carinho, ora erguendo-se altiva como uma leoa ferida, ora
deixando-se devanear em vagas promessas de prazeres terrenos. E o sexo idealizado fulgurava num horizonte de orgasmos múltiplos e ereções vitalícias.
Tudo acabado entre nós, já não
há mais nada...
Tudo acabado entre nós, hoje de
madrugada...
Você chorou e eu chorei... Você
partiu e eu fiquei...
Se você volta outra vez, eu
não sei.
(“Tudo Acabado”, J. Piedade
& Osvaldo Martins)
Dalva tinha um sotaque que até hoje tenho dificuldade de
localizar com precisão. Ela gostava de pronunciar um “erre” como um “ere”: “meu
amorrr... parrrtiu... o peixe é pro fundo das rrredes...” Sua voz cristalina e afinada fez escola em
Ângela Maria, Núbia Lafayette e mais tarde até em Elis Regina – esta numa outra
“chave” estilística, mais reflexiva, mais senhora de si, menos teatral, mas com
a mesma densidade interpretativa e a precisão das notas.
Errei, sim, manchei o teu
nome...
Mas foste tu mesmo o culpado:
deixavas-me em casa, me
trocando pela orgia,
faltando sempre com a tua
companhia...
Lembro-te agora que não é só
casa e comida
que prende por toda vida o
coração de uma mulher!
(“Errei, sim”, Ataulfo Alves)
Dalva e seu marido/compositor Herivelto Martins foram
roteiristas e atores de um drama conjugal vivido nas manchetes e nas
reportagens das revistas de fofocas. Traições, separações, reconciliações,
brigas, difamações públicas, batalhas judiciais. Uma dessas histórias de
escândalo que o showbiz encoraja e vampiriza. Vende disco, vende ingresso. E de
tantos em tantos meses, uma nova canção chegava às rádios, respondendo à canção
anterior do desafeto, como capítulos de uma telenovela escrita nos moldes de um
desafio de violeiros.
A história do machismo brasileiro, das relações de propriedade
amorosa, não pode ser escrita sem passar pelas composições de Adelino Moreira
para Nelson Gonçalves e as de Herivelto para/sobre Dalva. São aqueles momentos
da História em que existe uma sintonia total de emoções entre artistas e
público, uma retroalimentação constante de valores, de princípios, de balizas,
do que se pode e o que não se pode, do que se deve e o que não se deve.
Claro que a obra não vive apenas disso. São igualmente
belos e fortes os momentos de lirismo puro em que a beleza simples da cidade se
ergue mais alto do que as querelas pessoais. "Ave Maria no Morro” é um
momento lírico que eu comparo à “Alvorada” de Cartola:
Barracão de zinco, sem
telhado, sem pintura..
Lá no morro, barracão é
bangalô.
Lá não existe felicidade de
arranha-céu
pois quem mora lá no morro
já vive pertinho do céu.
(“Ave Maria no Morro”,
Herivelto Martins)
São esses passeios poéticos em que a dor individual se
dilui na beleza da paisagem humana. E mostra o morro em seu lado idealizado de
um lugar feliz de gente pura, ilusão tão inevitável quanto a de julgá-lo um
covil de viciados e assassinos. Foi inclusive por conta da bela imagem de
Herivelto que, muitos anos depois daquele show na Praça da Bandeira, eu e
Lenine fizemos outra música, falando do desembarque de uma nave de alienígenas
num morro carioca:
Os homens se perguntaram:
“Por que não desembarcaram
em São Paulo, em Brasília ou
em Natal?”
Vieram pedir socorro, pois
quem mora lá no morro
vive perto do espaço sideral.
(“O dia em que faremos
contato”, Lenine & BT)
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