Sou assinante de uma lista de mensagens chamada A Word A Day, que envia, seis dias por semana, um verbete de uma palavra da língua inglesa, com pronúncia, definição, etimologia e exemplos, além de uma “frase do dia” sem relação direta com o verbete.
Certo dia, um leitor, ao comentar o verbete
“cockalorum” (“pessoa presunçosa, que se vangloria; fanfarronice”) lembra um
outro sentido para esse termo, só que desta vez numa história cômica, meio
absurdista, meio picaresca. Diz Edie Bonferraro:
Cockalorum recebe um emprego diferente no conto Mestre dos Mestres, na antologia infantil My Book House. Um homem arranjou um criado e ensinou-lhe algumas palavras especiais que ele devia usar quando se referisse a várias coisas. Ele próprio, o dono, devia ser chamado ‘mestre dos mestres’, sua casa era ‘topo-top da montanha’, o gato era “siminino da carabranca”, as calças eram “buscapés e traques’, a cama era “a caramuja”; o fogo era “a quente-jactância” e a água era ‘alagoância’.
Durante a noite, o criado acordou o patrão gritando: “Mestre dos mestres, pule da caramuja e ponha os buscapés e traques, que siminino da carabranca está com quente-jactância acesa ao rabo, e se não trouxer alagoância, topo-top da montanha vira quente-jactância.” (No original: "Master of all masters, get out of your barnacle and put on your squibs and crackers; for white-faced simminy has a spark of hot cockalorum on her tail; and, unless you get some pondalorum, high-topper mountain will be all on hot cockalorum!").
O mundo é grande e pequeno, como diz o poeta. Isso aí na minha terra é
a história do “Menino Sabido e o Padre”, que todo livro de literatura oral
brasileira traz em pelo menos uma versão diferente. Eu e Antonio Nóbrega já fizemos
uma adaptação dela para usar numa peça. Há versões em que se trata de uma
criadinha. Há um sub-texto malicioso no fato de que o patrão chama certas
coisas por nomes bem diferentes.
A história que aprendi de memória, desde pequeno, fala de um padre que
emprega um moleque de recados (um pícaro como Cancão de Fogo ou João Grilo) e
vai lhe ensinando: a cozinheira que faz o jantar do padre é a folgazona, ele o
padre é o papa-hóstia, o fogo que está aceso no fogão é clareiamundo, o gato é
o mata-rato, a água do pote chama-se abundância; o diabo que se vê numa gravura
é o demo; e o algodão em cima da prateleira é a traficância. Alta noite, o menino
(por alguma rixa com o padre, ou por maus tratos) prende ao rabo do gato um
chumaço de algodão, toca fogo nele, e entra na alcova bradando:
Acuda seu
papa-hóstia,
dos braços da
folgazona,
venha ver o
mata-rato
com
clareiamundo no rabo;
se não acudir
com abundância,
leva o demo a
traficância!
Bastaria a construção destas duas últimas linhas para denunciar que
quem as compôs não foi um capiau analfabeto, e sim alguém acostumado a penas e tinteiros.
Podemos supor também, porque supor é só o que podemos, que histórias dessa
natureza, usando tal artifício, seduzem justamente o tipo de recontador doido
pra deixar uma contribuiçãozinha, dar uma melhorada na versão original.
Outro fator que vai transformando a história é o limite de nossa
capacidade de memorização. Muita gente passa adiante versões incompletas, ou
cheias de substituições aleatórias, simplesmente porque não lembra da história
direito.
Nem todo mundo tem a memória ou a vivência de Luzia Teresa, que gravou
centenas de histórias para a UFPB. E não há duas versões orais, por mais
confiáveis, que sejam igual uma à outra. Passar histórias adiante cruzando o
hiperespaço da memória é sempre contaminar, ou estropiar, ou diluir, ou
parafrasear, ou enxertar, ou substituir às pressas pra tapar um buraco...
Deve haver nessa anedota o resíduo de uma série de fricções culturais,
atritos carrancudos ou cômicos entre indivíduos com universos verbais
distintos. Personagens representando a dualidade entre a cidade e o campo, como
se diz na cidade, ou entre a rua e o mato, como se diz no mato.
As histórias em
que figura um padre são plausíveis, porque subentende-se que um padre é alguém
sempre a ensinar aos mais jovens e aos mais pobres a maneira certa de dizer as
coisas. E em geral são nomes complicados para as coisas mais comuns, que não precisam
de nenhum nome novo.
Essa historieta é também uma avó distante daqueles
milhares de esquetes cômicos de teatro, de rádio e de televisão, em que um
primo rico tenta ensinar ao primo pobre e caipira os “costumes e a linguagem da
cidade grande”, o que vira um moto-perpétuo de mal-entendidos.
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