Fui ver a primeira temporada dessa série de TV a cabo
(Netflix), em parte por curiosidade e em parte por pesquisa. Minha época
favorita na literatura e no cinema é a chamada Era Vitoriana. Depois dela,
somente a era Pós-Vitoriana, que é justamente esta aqui. Os ano 1910. Aquele
teatro social meticulosamente enredado em rituais, convenções, compromissos,
proibições, obrigatoriedades. Talvez as pessoas daquele tempo não tenham sido assim
mais do que nós mesmos somos hoje; mas, assim como não percebemos os roteiros
que seguimos agora cegamente, eles também não percebiam os deles.
Quando comecei a ver a série percebi que ela era um
spin-off, uma consequência ao mesmo tempo mercadológica e dramatúrgica do filme
Assassinato em Gosford Park (2001),
ótimo filme de Robert Altman interferindo meio americanamente numa típica
história policial britânica. O famoso “country house mystery” ou “cozy mystery”,
o mistério aconchegante. Uma casa de campo onde nobres, burgueses e seus
criados interagem em várias tramas complexas de assassinato, inveja, romance,
traição.
Gosford Park
foi escrito por Julian Fellowes. O novo milênio trouxe reviravoltas econômicas
e políticas no mundo, nenhuma das quais foi maior do que a Era da Hegemonia dos
Roteiristas, um título que não ocorreria ao mais ousado autor de pulp fiction. Uma
vitória mais improvável do que a da Revolta dos Sapateiros. Hoje, pelo menos na
TV, há roteiristas que comandam o show, não são o roteirista de estúdio, que
recebe encomendas vindas de cima e de desincumbe o melhor que pode. São autores
com cacife para conceber os arcos narrativos, com possíveis finais igualmente
fortes, e capaz de escrever (às vezes até se meter a dirigir) qualquer tipo de
cena para mostrar como deve ser feito.
Séries que gostei e que têm diferentes medidas dessa
receita foram True Detective, Breaking Bad, Game of Thrones, Arquivo X,
conceitos narrativos que pertenciam mais aos que escreviam do que aos que
estavam dirigindo. Quem diria que os roteiristas seriam os mamíferos, após o
reinado sáurio dos produtores e diretores!
Julian Fellowes ganhou um Oscar de Melhor Roteiro
Original com o filme de Altman, e alguns anos depois emplacou essa série que
ele escreve, em princípio, sozinho, com várias pessoas dirigindo os episódios. Não
tem o ritmo mais agitado de Altman, mas a própria quantidade de personagens a
leva a ter narrativa rápida, mesmo com muitos quadros estáticos. Bons diálogos,
cenas curtas, uma certa compressão narrativa que não exclui o suspense de manter
situações que só se resolvem ao longo de vários capítulos.
O SBT tinha uma novela chamada Os Ricos Também Choram. O filme-sobre-aristocratas-britânicos acaba
sempre revelando, não se sabe se por descuido ou se é por planejamento, que
apesar de tudo eles são humanos “como nós”. Só que têm mais dinheiro, e uma
espécie de hipnotismo que os domina sempre que certas palavras mágicas são
pronunciadas. Eles chamam a isso “valores”, “conceitos”, “premissas
inquestionáveis” e outras palavras vagas. No mundo deles, há certas frases que
são como a lâmina da guilhotina. Depois que ela cai, de nada adianta subir de
novo. Está feito.
Downton Abbey é
o mundo dos livros de Henry James, aquele pessoal muito paparicado, muito
advertido, muito preparado, muito imbuído das responsabilidades de sobrenome,
dinastia, tradição. Aqueles salões sociais à base de intrigas sussurradas,
alianças e armagedons, maquinações políticas e armadilhas amorosas. Só que, no
presente caso, nada de melodrama ou folhetim. Ao contrário. Tudo à base de
inuendos, nuances, entendimentos duplos, deslocamentos de sentido, elipses,
síncopes subentendidas.
Era o mundo de Machado de Assis, também. Ressalvando a
faixa aquisitiva, a latitude, o pedigri de nobreza, mas era também o da nossa
Corte um mundo de salões, de ceias, de recepções, de valsas, de leques, de
olhares dissimulados, de cochichos entre patrões e agregados, de coisas que não
se deve dizer, de coisas em que pode-se apenas pensar o tempo todo.
Esse clima predominava talvez no tempo vitoriano. O que
vemos em Downton Abbey é a
continuação disso, o desagregar disso numa certa modernidade onde há uma permeabilidade
social maior. Uma das coisas interessantes do seriado são as diferentes
maneiras como ele mostra personagens incomodados pelos papéis sociais que
precisam exercer, personagens recusando-se a entrar num jogo de fingimentos.
Desconfortáveis com sua persona pública ou com as cobranças feitas a ela.
O filme onde Julian Fellowes testou a fórmula com
sucesso, Gosford Park, tinha
(conforme foi encomendado pela produção) algo de Agatha Christie: a labiríntica
mansão, os ricos ruidosos, os criados vigilantes, um corpo na biblioteca.
Cronologicamente, no entanto, Downton
Abbey está menos para o tempo de Lady Agatha do que para o de Sherlock
Holmes, que é de uma geração anterior. A primeira temporada da série de TV vai
do afundamento do Titanic em 1912 até
a declaração da guerra à Alemanha em 1914. Sherlock Holmes tinha 60 anos quando
essa guerra começou. Poderia ter sido um hóspede eventual em Downton Abbey; era
a época do seu último adeus.
Em Downton Abbey,
a série, se reproduzem os mesmos vasos sociais comunicantes que havia em Gosford Park, o filme. A série é talvez
mais emproada, mais cintura-dura, mas a comparação com Altman pode ser injusta.
São concepções diferentes: um filme de duas horas e uma série com oito
episódios na temporada de estréia. Os dois anos de peripécias dos oito
episódios da primeira temporada dariam material folgadamente para uma das
nossas novelas em horário nobre, uma novela de duração mediana.
Ao que tudo indica (não gosto de saber spoilers, então me
informo pouco) Downton Abbey não
deverá ter derrapagens na direção do fantástico, será uma ópera sabão-em-pó de
época. A época tinha seu charme e tinha sua sombra. Para cada fidalgo da
família de Lord Grantham há um servo seu ou serva sua que está sempre por
perto, com fidelidade, rapidez e silêncio. Parece até que cada Dorian Gray
tinha um retrato ambulante aos seus pés, definhando para servi-lo. Ou que cada
doutor Jekyll tem como servo um Mr. Hyde, ou vice-versa. Não é o caso, me
parece. Tudo indica que a dramaturgia será realista até o fim. Mas por que o romance histórico seria menos
nobre que o romance fantástico?
Acabei sabendo que na vida real Highclere Castle, o belo prédio
onde se desenrola a narração estritamente realista de Downton Abbey, é um castelo que pertenceu a Lord Carnavon, o financiador
da descoberta do túmulo de Tutankhamon, e uma das vítimas mais famosas da
famigerada Maldição da Múmia. Fiquei sabendo também que alguns dos seus
interiores serviram para as cenas do ritual erótico onde Tom Cruise se infiltra
de penetra, em De Olhos Bem Fechados (2001)
de Kubrick. São dois precedentes ilustres do quais o previdente Fellowes pode
lançar mão para muleta de plot, caso um dia comece a faltar assunto.
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