sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

4024) Os marcianos de Wells (15.1.2016)



(ilustração: Henrique Alvim Corrêa)

Quando H. G. Wells publicou A Guerra dos Mundos (1898), sua invasão alienígena surgiu bem no miolo do espírito do tempo. A Grã-Bretanha, no auge do colonialismo, podia se ver como invasora e como invadida, como a literatura de guerra da época cansou de explorar. Havia uma plausibilidade enorme naquela população pacata do interior que primeiro se aglomera e se abanca para assistir a mais um prodígio merecedor de conversas de “pub”, e logo em seguida dispara espavorida ao ver que aquilo é uma invasão maligna, de criaturas que vieram para matar.

Verossímil porque percutia as teclas de medos mais profundos, medos coletivos e ancestrais. Howard Koch, o homem que roteirizou para Orson Welles a famosa adaptação radiofônica de 1938, se maravilhava ao ver os ouvintes aceitando que dentro de meros 45 minutos avistavam-se em Marte as explosões do disparo das naves, a chegada destas à Terra, o ataque dos marcianos, o extermínio de batalhões inteiros e a queda das principais cidades. Em apenas 45 minutos, e tanta gente acreditou!

É a lição da literatura, do cinema, do próprio rádio: se uma narrativa for sólida e flexível, e se houver continuidade topológica em sua estrutura de causas e efeitos, ela pode ser comprimida ou esticada até limites muito amplos. Só perde a força quanto a compressão força a retirada de elementos essenciais, ou quando a expansão começa a diluir seu movimento interior.

Os marcianos são fisicamente monstruosos, e dominam uma alta tecnologia. São dois clichês do gênero, e Wells os explicou em poucas páginas, como já fizera com a teoria do Tempo como 4a. dimensão em A Máquina do Tempo (1895). Mais do que os clichês, contudo, vale observar os pequenos detalhes que o seu narrador percebe e comenta. A certa altura, trancado num porão que os marcianos examinam à procura de humanos, o narrador diz: “Passou-se uma era inteira de intolerável suspense, e então eu os ouvi mexendo no trinco. Os marcianos entendiam portas!”.

E no entanto esses mesmos marcianos desconhecem a roda. Locomovem-se via estruturas metálicas insetóides, baseadas em sistemas de alavancas e de discos de um material elástico que, como os nossos músculos, se contrai à passagem de corrente elétrica. Esse jogo de aproximações e afastamentos se estende pelo livro inteiro. Inclui a revelação indireta de que os marcianos se alimentam do nosso sangue, e à cena inesquecível na reta final, quando o narrador, percorrendo a Londres devastada e deserta, avista uma máquina marciana imóvel à distância, aproxima-se, e vê os urubus devorando tiras de carne de algo que está lá dentro. Uma imagem que diz tudo sobre nosso parentesco.




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