Num artigo na revista Locus (2003), Gary K. Wolfe (um dos melhores críticos de FC em atividade) fez uma comparação entre três dos melhores romances da época: The Years of Rice and Salt de Kim Stanley Robinson, Coraline de Neil Gaiman e The Scar de China Miéville. O ponto de vista dele é expresso nessa frase: “Não é que os livros pertençam a determinados gêneros, eles derivam desses gêneros”. O livro de Robinson é uma espécie de FC, o de Gaiman uma espécie de terror, o de Miéville uma espécie de fantasia. Não poderiam (diz Wolfe) ter sido escritos, nem serem lidos, sem a conexão com esses gêneros. Mas nenhum deles pode ser plenamente assimilado somente em termos dos gêneros.
A grande maioria das discussões literárias (para não falar
nas outras) nunca chega a lugar nenhum porque parte de premissas
inadequadas. Essas premissas são os
termos que usamos na discussão e que nunca questionamos. Vemos todo mundo discutir o assunto naqueles
termos, e achamos que está certo, que essa é a única maneira de pensar a
respeito. E não é. Podemos propor (como fez Wolfe) uma maneira
diferente de enxergar o problema.
A expressão “pertencer a” contamina qualquer argumentação.
Condiciona nossa maneira de falar sobre as coisas, de descrever as relações que
a gente vê entre elas. “Pertencer”, além de indicar posse, indica uma relação
hierárquica, impõe uma polaridade tipo superior/inferior. Se a obra “pertence” ao gênero X, então pra
todos os efeitos o gênero comanda a obra, a obra tem que obedecer às leis dele
e às exigências dele, e, como não se pode servir a dois senhores, quem
“pertence” a um gênero não pode pertencer ao mesmo tempo a outro.
E podemos, agora sim, dividir as obras em dois tipos. O
primeiro é o das que aceitam pertencer, sim, a um gênero, aceitam seguir as
fórmulas do gênero, porque é no universo do gênero que querem fazer sucesso e
alcançar a fama e a fortuna, não necessariamente nesta ordem. O segundo tipo é
o das obras que não querem “pertencer” a um gênero, querem nascer dentro dele e
nutrir-se dele, mas ao fim e ao cabo querem afastar-se dele, derivar tendo-o
como porto de decolagem. Ir embora do gênero levando algo dele consigo, assim
como Severian foi embora de Nessus.
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