quarta-feira, 10 de abril de 2013

3156) O último quadro (10.4.2013)






No dia em que a Revolução Descalça tomou a capital do país, Henryk  Rhysdael amaldiçoou-se pelo otimismo que o impedira de fugir. A família estava em segurança em Londres, com a promessa de que voltaria para casa quando o governo controlasse os rebeldes. Agora, por entre os vidros à prova de balas do terraço do seu bunker de banqueiro, ele via o tsunami de torsos negros superlotando as ruas, os móveis sendo arremessados das janelas, os incêndios se alastrando. Um ratatá ensurdecedor vindo do alto disse-lhe que os selvagens, além de armamento, contavam com helicópteros estrangeiros. Colado à porta blindada,  acompanhou o tiroteio no corredor. Vestiu a roupa suja de operário que guardava para uma emergência, lançou o último olhar para o duplex de 900 m2 onde fôra feliz, e desceu pelo alçapão para o apartamento de baixo, que sabia desocupado, dali para a escada de serviço, e dali, em meio à turba que saqueava tudo, para as ruas, a fronteira e o exílio.

Voltou ao país dez anos depois, numa missão humanitária para investigar denúncias de torturas por parte do governo revolucionário. Pela janela da limusine viu que os prédios ainda guardavam marcas de fogo e buracos de balas. Durante os debates, ficou amigo de um capitão do exército cujo pai lhe devia favores. Na véspera da partida, fez o pedido: queria visitar seu antigo endereço. Soube que o edifício era agora um alojamento para migrantes fugindo das epidemias do campo.

O prédio estava cercado de barracas de fruta e de peixe. No hall, eles abriram caminho por entre filas de pessoas com mochilas às costas e sacos na cabeça. Subiram pela escada; o elevador estava quebrado há dois anos. Crianças fugiram ao vê-los, escondendo-se nos apartamentos e espiando pela fresta da porta. Alguns andares tinham pintura recente, outros estavam cobertos de grafittis e de frases numa língua que ele não reconheceu.

Chegaram à cobertura. O salão estava cheio de redes armadas de parede a parede. As vidraças tinham sido arrancadas. A pérgola era agora um cercado onde cacarejavam galinhas. Cumprimentando, pedindo licença, ele percorreu os aposentos. Um quarto estava cheio de arroz até quase o teto; a porta mal abria. A suite principal era um berçário onde mulheres de seios pendidos o olharam com indiferença e cansaço. Nada restava da mobília, dos tapetes, dos quadros, mas em outra suite ele viu o milagre impossível: intacta, cobrindo toda a parede, sua reprodução (encomendada) da “Entrada de Cristo em Bruxelas”, de James Ensor. Percebendo sua emoção, um homem de uma perna só ergueu-se, apoiado em muletas, e veio ao seu encontro. “Esse aí ninguém queima”, explicou. “É bonito”.



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