(Pe. Antonio Vieira)
O
jornal literário Rascunho, de Curitiba, publicou em abril uma entrevista de
Alfredo Bosi, “Ler com a alma”(http://bit.ly/IKEary).
Ele examina a figura do Pe. Antonio
Vieira (1608-1697), um desses personagens que ninguém encaixa numa categoria
só. Vieira, na sua ação política e na
expressão ideológica, era um sujeito escorregadio, elusivo, que mordia e
assoprava todo mundo no arriscado xadrez político do seu tempo. Se me perdoam a
comparação plebéia, ele vivia dando o drible-da-vaca nas autoridades, tocando a
bola para a direita e rodeando-as pela esquerda, com um volteio da frase. Vieira foi um dos fundadores do nosso idioma,
e fez pela prosa o que Camões fez pela poesia.
Ler Vieira é como fazer um passeio de asa-delta com um instrutor
experiente. A gente nunca pensaria
aquilo sozinho, mas tendo a voz dele como guia fica com a sensação de ser capaz
de pensar qualquer coisa.
A
certa altura, Bosi comenta as análises de Otto Maria Carpeaux sobre Vieira, e
diz: “Vieira queria que todos pagassem impostos, inclusive o terceiro Estado, e
não tivessem os privilégios da nobreza e do clero; ele diz coisas muito fortes
contra a desigualdade das contribuições. Finalmente, ele diz que o que vale no
homem é o que ele faz, e não os seus ascendentes, sua linhagem. Parece uma
idéia que só na Revolução Francesa vai ter seu momento tremendo, sua explosão.
A idéia de que somos iguais, filhos do mesmo Adão, e pela teologia não deve
haver nobres, não deve haver hierarquias. Então ele diz, num dos sermões, somos
o que fazemos, não somos o nosso nome, mas a nossa ação. (...) Carpeaux chama
isso de pseudomorfose. É como uma pessoa que tem forma muito conservadora, mas
idéias revolucionárias, ou então uma pessoa que tem palavras muito
revolucionárias na boca, mas ela tem toda uma ação conservadora. Isso é muito
comum na nossa época, como é que uma pessoa tem uma forma que não convém ao seu
conteúdo? E isso é a pseudomorfose”.
Maiakóvski,
por exemplo, dizia que não pode haver idéia revolucionária sem forma
revolucionária, e que as grandes transformações sociais exigem grandes
transformações da linguagem poética. Mas talvez ele dissesse isto porque nele
convergiram a Revolução Soviética (um dos maiores catalisadores de utopias do
século 20) e o Formalismo Russo, um complexo movimento de vanguarda. Vieira não
foi vanguarda literária no sentido de ruptura, como Maiakóvski, mas foi o ponto
mais alto de uma tradição, o que no frigir dos ovos vale muito bem uma vanguarda.
Sua linguagem e sua postura escorregadia foram instrumentos para colocar em
xeque a própria cultura e civilização que produziram aquela linguagem.
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