segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010
1624) “As aventuras de Huck” (27.5.2008)
Estive relendo As Aventuras de Huck, de Mark Twain, que já foi chamado “o romance mais divertido que já foi escrito”. Se não é, está perto de ser. Twain é um desses escritores adultos que sabem pensar como uma criança, contar a história do ponto de vista da criança, e ao mesmo tempo manter estilo e narrativa sob um controle de adulto. Alguns autores perdem esse controle. Passam a raciocinar como crianças e não como escritores, o que torna seus livros uma coisa infantilóide. Outros evitam isto indo na direção oposta – distanciam-se da criança e contam suas aventuras “de cima”, com um olhar paternalista cheio de ideologia. Mark Twain não. Ele faz tudo certo.
Huckleberry Finn é um garoto que foge de casa e percorre o rio Mississipi de canoa e jangada, metendo-se em aventuras tragicômicas. A descrição da vida beira-rio, o universo de infância de Twain, é de enorme beleza, porque decorre do seu conhecimento de milhares de detalhes e de aspectos secundários daquele ambiente, algo que só um nativo tem. Eu não sei nada do Mississipi, mas tudo que Huck Finn descreve e demonstra tem uma verossimilhança enorme, porque ele possui aquele “saber só de experiências feito”. Soa verdadeiro. Como devem soar verdadeiras a um leitor estrangeiro as aventuras do Carlinhos de Menino de Engenho e do Pedrinho do Sítio do Picapau Amarelo.
O livro tem uma posição curiosa na cultura dos EUA. A seu respeito já se escreveu uma estante inteira de estudos e teses. Ao mesmo tempo, é ferozmente perseguido em alguns setores politicamente corretos, porque, passando-se na época da escravatura, mostra sem culpa o modo como os negros eram tratados pelos brancos – e usa o tempo todo a palavra “nigger”, considerada hoje nos EUA umas das mais ofensivas do idioma, a ponto de ser mencionada na imprensa como “the N Word”, “a palavra que começa com N”. É tabu, e daqueles bem pesados.
Não era tabu em 1885 quando Mark Twain escreveu seu livro. Posso entender que leitores negros de hoje se compadeçam do escravo Jim, que tem um amor e uma fidelidade canina por Huck, e que na parte final serve de mero brinquedo para os divertimentos dele e de seu amigo e mentor, Tom Sawyer. A crueldade inocente dos garotos, para mim, tem menos a ver com o racismo (ou seja, com uma convicção profunda de que os negros são inferiores) do que com as diversões meio sádicas de qualquer criança, dentro das regras do seu mundo. Me lembra um pouco o modo como as crianças de Cem Anos de Solidão transformam a avó Úrsula em brinquedo, depois que esta fica gagá e indefesa. Parece também com o sofrimento de Tia Nastácia nas mãos dos garotos do Picapau Amarelo, que valeu igualmente a Lobato uma série de críticas pelo alegado racismo. O caso é que, em vez de criar histórias educativas sobre como os garotos deveriam se comportar (as quais têm lá sua utilidade, suponho), Twain, Lobato e Zé Lins são garotos grandes que contam exatamente como se comportavam.
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