quarta-feira, 11 de novembro de 2009

1359) Espaços que desaparecem (22.7.2007)




Moro numa rua tranqüila à qual se chega subindo uma ladeira. Lá embaixo corre a rua principal do bairro, onde passam as linhas de ônibus, e por onde a corrente principal do tráfego fervilha o dia inteiro. É também uma rua de comércio intenso, com algumas galerias, numerosas lojinhas, lanchonetes, bancos, brechós, academias, toda a biodiversidade urbana que fervilha sem parar diante dos nossos olhos, visível e invisível.

Dias atrás, num dos trechos que mais freqüento, havia uma loja nova sendo preparada. Aquele espaço vazio em forma de caixa de sapatos, cheio de carpinteiros atarefados trocando o piso, estripando fiações elétricas, martelando tábuas e desencaixotando ladrilhos. De um lado, a lojinha fotográfica onde já comprei uma câmara; do outro lado, a farmácia onde compro mel-com-própolis-e-guaco. Aí me deu um branco. O que existia entre as duas? Sumiu alguma coisa que me era tão familiar quanto a lojinha e a farmácia, mas, como sumiu, eu agora não sei mais o que é.

Nossa memória é capaz de registrar a ausência de algo sem saber do que é. Se estão preparando uma loja nova, é porque existia outra coisa naquele endereço. Mas, como diz o matuto, se eu souber o que era eu “estóre”! Fosse o que fosse, era algo com que minha percepção tinha uma relação meramente passiva, perceptiva. Algo que eu passava na frente, olhava, registrava rapidamente, e dez segundos depois evaporava-se da lembrança para dar lugar a outra impressão, que por sua vez fazia o mesmo para dar lugar a outra, e assim por diante.

Quando tento visualizar a rua que eu conhecia enxergo a lojinha fotográfica de um lado, a farmácia do outro, e entre as duas um espaço indeterminado. Não é um buraco negro como um dente-da-frente faltando. É apenas uma ausência sem correspondente visual. Sei que a imagem está gravada na minha memória (nada que registramos é deletado; é apenas “jogado na Lixeira”), mas a ansiedade gerada por aquela substituição me impede de ver o que era. A imagem atual (o espaço vazio com os carpinteiros) impôs um corte, questionou minha capacidade retentiva, instaurou uma pequena crise emotiva: “Tá vendo, seu idiota? Você tão burro que é incapaz de lembrar uma coisa que tinha aqui e que você já viu mil vezes nos últimos dez anos”. Vi mil vezes, mas agora me deu um branco e não vejo mais.

Lembrarei um dia, quando conseguir recuperar essa lembrança na ponta oposta do barbante; quando em vez de procurá-la na minha memória eu a procurar na minha vontade. Um dia descerei confiante e inadvertido rumo àquela rua, pensando, “Ah, que bela tarde para dar uma passada naquela lanchonete de sanduíches naturais e sucos feitos com hortaliças!”. Chegando lá, horrorizado, me depararei com essa cena bretoniana, surrealista: de um lado a lojinha fotográfica, do outro a farmácia, e no meio a minha querida lanchonete natural foi substituída por um ofensivo açougue e suas vidraças sanguinolentas.


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