(Goya, Modo de Volar)
O Museu de Arte de São Paulo está com uma exposição de gravuras de Goya, a qual nos dá uma idéia muito boa do talento transbordante do artista, e também da importância da gravura, numa época pré-fotografia, como registro de época e de mentalidades, mesmo quando suas intenções não eram realistas nem documentais. Embora dê mais trabalho do que, por exemplo, um desenho a nanquim ou uma aquarela (o que é sempre relativo, pois tem mais a ver como o ritmo do artista do que com a técnica em si), a gravura se cristalizou nos séculos 17 e 18 como o principal recurso de ilustração, da imagem cuja primeira função é fornecer uma referência visual para uma discussão verbal que circula num certo momento.
A exposição de Goya se organiza em quatro temas: Desastres da Guerra, Tauromaquia (touradas), Caprichos e Disparates. Não precisamos ir a São Paulo para conhecer estas gravuras; podemos ver todas elas, virtualmente, em: http://www.almendron.com/arte/pintura/goya/estampas/estampas.htm.
Aconselho uma visita para que se perceba como o mesmo artista pode ser um realista extremado e um visionário delirante. As gravuras “Desastres da Guerra” são de uma violência brutal, mostrando fuzilamentos, torturas, massacres, perseguições, e o terror do pós-guerra, a fome campeando de ponta a ponta, os retirantes esquálidos. Em contraste, as gravuras da série “Tauromaquia”, das corridas de touro, são até ingênuas, mesmo quando mostram os animais sendo sacrificados na arena ou quando, como tantas vezes acontece, “a Caça caça o Caçador”, e é o toureiro quem perde as tripas no fim da brincadeira. Pela primeira vez vi imagens de muçulmanos toureando: durante a ocupação árabe na Península eles adotaram os costumes locais, mesmo indo de encontro ao Corão.
Os “Caprichos “ são uma série de 80 imagens que têm um fundo crítico e moralista. O artista condena os vícios que são de se esperar na Espanha do século 19: avareza, cobiça, luxúria, hipocrisia, etc. Nesta série se encontra “O sonho da razão produz monstros”, talvez a gravura mais famosa de Goya, que mostra uma mulher reclinada sobre uma mesa, a cabeça pousada nos braços, e por trás dela aves fantásticas e ameaçadoras.
Os “Disparates” são 18 gravuras fantásticas em que Goya se aproxima de grandes criadores de máscaras terríveis como Hieronymus Bosch ou James Ensor. São demônios, duendes, trasgos, criaturas das trevas misturando-se a cenas cotidianas de grupos que conversam, casais que discutem, artistas ou dançarinos que se exibem. O violento claro-escuro habitual nas pinturas de Goya aparece aqui valorizado pelo preto-e-branco (ou cinza-e-sépia) das gravuras. Numa delas, “Modo de volar”, vemos uma prefiguração das asas-delta de hoje. Em todas (principalmente vistas em conjunto com o mundo das invasões napoleônicas, das corridas de touros, dos vícios do povão) o mundo delirante de um artista capaz de retratar ao mesmo tempo o visível e o por-trás-do-visível.
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