(Samuel R. Delany)
Por alguma razão que os psicólogos talvez expliquem, a crítica literária tem um fascínio inesgotável pela Lenda dos Manuscritos Desaparecidos. Os exemplos são inúmeros. São livros escritos por autores de renome, que por uma razão ou outra se perderam e ninguém leu. Volta a meia um deles está sendo desenterrado.
Recentemente os jornais noticiaram que uma autora holandesa, Hella Haasse, localizou em casa os recortes de um folhetim que publicou num jornal há 57 anos, e cujos originais se perderam. A autora não lembrava de ter recortado os capítulos, que só foram encontrados agora.
A história é interessante, mas não se compara à valise cheia de manuscritos sem cópia que a esposa de Hemingway perdeu numa estação de trem de Paris. Ou à minha história preferida do gênero: Voyage, Orestes, romance de Samuel Delany, um dos grandes autores de ficção científica dos EUA.
Em 1963, Delany enviou este livro (cujo manuscrito datilografado tinha 1.056 páginas) para várias editoras, que o recusaram: o narrador era negro, o protagonista era gay... Delany, que na vida real é as duas coisas, viu que não era a hora de falar em tais assuntos. Anos depois ele ficou famoso com Dhalgren, outro romance de mil páginas, que vendeu um milhão de exemplares.
Um dos editores de antes lembrou-se de Voyage, Orestes e ligou para o autor.Em 1963, um escritor de 22 anos não tinha dinheiro para fazer fotocópias de um livro. Não existiam, então, as hoje onipresentes máquinas xerox. Delany tinha apenas uma cópia datilografada. Seu agente literário precisou mudar de escritório, com dezenas de caixas de papelão com manuscritos. Uma dessas caixas, onde tinha ficado Voyage, Orestes após sua derradeira recusa, perdeu-se.
Depois de algumas semanas de buscas, ele desistiu, e avisou ao autor. ”Não faz mal,” pensou Delany. Porque havia a cópia-carbono da versão datilografada, numa casa onde ele havia morado por alguns anos, na Rua 6, em Nova York. Estava num armário, em segurança, no porão da casa.
Delany pegou o metrô e foi até lá, para descobrir que a casa tinha sido vendida há poucos meses, tinha sido demolida, e ali em cima ia ser construída outra coisa. Ele contactou os donos da casa, que lhe disseram: “Ficou tudo lá no porão.. só tinha uns trastes velhos... você falou que eram papéis sem importância...” E de fato eram, até o momento em que a primeira via se perdeu.
Um livro de mil páginas escrito ao longo de três anos merecia ter um melhor destino. Mas, como dizia o poeta, o Passado não está morto, ele nem sequer terminou de passar ainda. Eu não duvido que a próxima manchete “Autor encontra manuscrito desaparecido há meio século” se refira a Voyage, Orestes, quando uma caixa de papelão cheia de pastas amareladas pelo tempo aparecer num depósito em Coney Island, ou quando um comando da Guerrilha Literária Futurista abrir um túnel até o porão da casa da Rua 6.
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