Nos velhos livros de Português do ginásio estudamos que no Romanceiro Português Medieval havia vários tipos de cantigas: cantigas de amor, cantigas de amigo, e um gênero cujo nome sempre me fascinou: “cantigas de escárnio e de maldizer”. Por alguma razão freudiana, eu sempre me senti mais habilitado para este tipo do que para os demais, e só não me dediquei desde muito cedo ao seu cultivo por causa do meu espírito cristão (e do medo de levar cascudos). Depois, acabei fazendo algumas, das quais o bolero brechtiano “Soberano Desprezo” talvez seja a mais notória.
O gênero foi mantido vivo através dos séculos pela poesia popular, e ninguém escarnece tão bem quanto um cantador de viola. Em peleja com José Francalino, o Cego Aderaldo mandou: “Puxa fogo, cabeleiro / instinto do mal, Lusbel / febre negra de acobaça / dentes de leão cruel / Judas que cuspiu em Cristo / entranhas da cascavel”. E Francalino ripostou: “Puxa, puxa, cego velho / te sustenta a retintiva / apanha hoje não tem jeito / de chorar ninguém lhe priva / tu ronca no nó da peia / apanha até dizer viva”. A tradição do desafio de ofensas é inesgotável, e o seu encanto rude se prolonga pelo forró; basta ouvir Biliu de Campina cantando “Eu sou melhor do que tu” ou João Gonçalves dizendo “vai tomar banho na cacimba, quando tu levanta o braço ninguém agüenta a catinga...”
Escarnecer e falar mal são uma Grande Arte como qualquer outra. E ninguém é obrigado a recorrer ao insulto, ao palavrão, à ofensa direta. Temperamentos mais chegados à política e a diplomacia podem produzir textos igualmente arrasadores. Veja-se como o nosso atual ministro Gilberto Gil reduziu a pó seus detratores: “Tu, pessoa nefasta, vê se afasta teu mal, teu astral que se arrasta tão baixo no chão...” Leiam esta letra e tremam, amigos. É alta filosofia, e é cantiga-de-maldizer pra nenhum trovador da Galícia botar defeito.
Bob Dylan, que é outro PhD em Sarcasmo, tem duas canções monumentais neste gênero. “Positively 4th Street” (1965) é um acerto de contas, cheio de vitríolo, com os falsos amigos e os aproveitadores em geral: “Eu sei por que você fala de mim pelas costas; já freqüentei sua turma. Eu gostaria que por um momento você estivesse em meu lugar, para poder saber que droga é olhar pra você”. E em “Idiot Wind” (1975) ele diz: “Há um vento idiota que sopra toda vez que você abre a boca... Você é um idiota, rapaz. É um milagre que você saiba respirar”.
Os estudiosos da poética dos trovadores medievais explicam que as cantigas de maldizer eram dirigidas explicitamente contra Fulano e Sicrano, enquanto que as cantigas de escárnio eram menos diretas. A grande vantagem destas últimas é serem suficientemente explícitas para que o destinatário, na primeira vez em que as ouça, saiba de imediato que a carapuça lhe cabe, e ao mesmo tempo terem profundidade bastante (e riqueza exemplificativa) para serem uma receita de larga aplicação. Sempre há quem mereça.
Um comentário:
Olá!
Já o conhecia de ler alguns dos seus artigos em Jornais; Encontrei seu blog quase que por acaso e gostei muito, já está entre os meus favoritos, voltarei mais vezes aqui, parabéns!
Ariadna Garibaldi
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