sexta-feira, 8 de agosto de 2008

0497) A morte no cinema (22.10.2004)


("O Manto Sagrado")

Meu primeiro contato com uma morte de verdade no cinema foi num faroeste que contava a vida de Jesse James. É claro que àquela altura eu já tinha visto centenas de índios e de bandidos sendo abatidos a tiros, mas, como sabemos, essas mortes não contam. São mortes cenográficas, um mero telão-de-fundo para as aventuras e façanhas dos mocinhos. No tal filme, porém, levei um choque. No fim, depois de muitos tiroteios e cavalgadas, Jesse James está mais ou menos aposentado, e recebe umas visitas em casa. A certa altura ele se levanta para ajeitar um quadro na parede, ou para pegar alguma coisa num armário. O visitante, em visível desobediência às regras básicas da dramaturgia, puxa o revólver e o enche de tiros pelas costas. Jesse James morre, e o filme acaba.

Me consolei um pouco quando fiquei sabendo que foi assim na vida real, mas uma pulga instalou-se atrás da minha orelha. E voltou a morder com toda força quando fui ver Psicose de Hitchcock, que talvez seja o primeiro caso na História do Cinema em que a estrela principal morre com 20 minutos de filme. Saber que o filme continuaria até o fim sem a presença de Janet Leigh me pareceu tão injusto quanto saber que o mundo continuaria um dia sem a minha.

Hesito em listar aqui a morte de Marcelino Pão e Vinho – primeiro porque não é bem uma morte, e sim uma subida aos céus nos braços de Cristo; segundo, porque vi o filme quando tinha aquela mesma idade, e minha identificação com o personagem era tão forte que qualquer julgamento fica necessariamente prejudicado. Mas poucos anos depois marejei os olhos quando Alain Delon morre num duelo em Christine (deixando Romy Schneider inconsolável). Para mim, eram dois adultos que viviam num mundo de emoções inacessíveis. O que me apavorava era descobrir que o Final Feliz não era uma Lei da Natureza, e sim um capricho ocasional dos produtores cinematográficos. Nenhuma felicidade estava garantida, nem mesmo a fictícia: eles, os Personagens, eram tão mortais quanto nós. O que me pareceu, pela lógica arrevesada que vigora na cabeça dos escritores, uma injustiça ainda maior.

Certas mortes no cinema nos abalam porque acreditávamos que ali, pelo menos, era um território onde o “The End” não era um fim, e sim uma porta aberta para a eternidade. No mundo que víamos através do écran dourado ninguém morria, ou pelo menos ninguém que importasse. Por isto ainda me lembro da sensação de abismo que experimentei na cena final de O Manto Sagrado, quando Richard Burton entrega a alguém o manto púrpura de Cristo e, de mãos dadas com Jean Simmons, marcha na direção dos portões que se escancaram para a arena, onde os dois serão devorados pelos leões. A memória emocional que guardo desse momento pode ser assim transcrita: “Mas é assim que vai acabar? Tanta luta, tanta esperança, e no fim a gente vai morrer?” Vai. E é melhor ficar sabendo aos dez anos de idade, porque depois a porrada vai ser maior ainda.

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