terça-feira, 14 de outubro de 2008

0599) O surfe e o hip-hop (18.2.2005)



A julgar pelo que a gente vê nas revistas, nos jornais e na TV do país, todo adolescente brasileiro pratica o surfe e escuta hip-hop. Estas atividades parecem ser o “default”, o padrão, o piso-base obrigatório para os 50 ou 60 milhões de adolescentes (não sei quantos são, tou chutando) do Brasil. É um daqueles raciocínios perversos em que se toma uma parte para representar o todo, mesmo quando esta parte é uma exceção. Juntam-se, aí, a imposição de modismos da indústria cultural, o desconhecimento prático do que é o país (e o desinteresse em conhecê-lo), a preguiça, e aquilo que eu chamo “a plausibilidade do clichê”. Todo clichê mental só gruda se for plausível. Se você disser que senhoras de 60 anos gostam de fazer tricô e ler Agatha Christie, todo mundo acredita sem questionar, porque é plausível, mesmo se não for verdade. Parece verdade, e, para 90% das pessoas, parecer verdade é o bastante.

Daí que parece plausível a noção de que o surfe e o hip-hop são os hábitos preferidos dos jovens urbanos brasileiros. A toda hora vemos a propaganda, as telenovelas ou as revistas para adolescentes insistindo nestas duas teclas. Já participei de dezenas de reuniões em que as pessoas diziam: “Para atingir o jovem, tem que falar a linguagem do jovem. Se a gente quer dizer ao jovem para usar camisinha, tem que dizer isso em ritmo de hip-hop”. Ou seja: o jovem é um sujeito tão burro, tão tapado, que só é capaz de entender uma única linguagem. Ao mesmo tempo, é um cara inteligente, porque a única linguagem que ele entende é uma linguagem que vem de outro país. Os redatores de TV e de publicidade estão projetando no jovem a sua própria preguiça mental, e a sua própria falta de disposição para sair do ar condicionado e passar alguns meses convivendo com diferentes grupos de jovens de verdade.

Estou usando o surfe e o hip-hop como amostra, mas vou logo avisando que nada tenho contra estas duas atividades em si. Porque uma outra distorção (reflexo contrário na anterior) é que se criou também a noção de que quem pratica surfe é burro, e quem pratica hip-hop é delinqüente. Eu acho o surfe uma das atividades mais saudáveis que existem no planeta. Quem me dera poder fazer aquilo uma vez por semana! Tem surfistas que ficam somente pegando onda 12 por dia, 365 dias por ano, e aí acabam ficando meio burrinhos. Mas, vamos e venhamos, se alguém ficar esse mesmo tempo somente lendo Física Quântica ou somente ouvindo Música Barroca, vai acabar meio burrinho também.

O hip-hop é uma cultura nascida dos bairros negros de Nova York; é a cultura dos excluídos da cultura oficial, a arte de quem não pode fazer arte, a voz de quem não pode falar. Como acontece com todo movimento de contestação, foi assimilado pelo mercado, transformado em via fácil de enriquecimento, e em clichê comodista para descrever pelo lado de fora uma comunidade que não se tem interesse (ou coragem) de conhecer por dentro.

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