“Uma praia onde os cachorros ladram para navios com velas tatuadas”, diz uma canção de Bob Dylan. Tatuagens são uma das nossas formas de martirizar o próprio corpo, transformá-lo em superfície, em suporte, em papel onde se escrevem mensagens. A auto-mutilação, por exemplo (ver “Limbo: a guerra ao corpo”, 6.9.2003), é apenas uma forma radical dessa atitude de considerar o corpo algo que pode sofrer intervenções para ganhar mais significado.
O que é a maquilagem, por exemplo, senão uma forma branda dessa mania de escrever e pintar coisas sobre si mesmo? Há milhares de anos que o uso de cremes coloridos facilmente removíveis é usado como um equivalente mais “light”, mais suavizado, do uso de cortes e cicatrizes rituais que definem papéis sociais ou religiosos. A maquilagem é o território de mensagens efêmeras; a tatuagem é um gesto radical, um recado que dura para sempre.
É essa permanência cruel da tatuagem que, penso eu, a deixa tão em moda entre os jovens. Toda vez que uma moda pega, podem ir atrás que ela corresponde a uma vontade oculta no juízo desses milhões de pessoas. Fico besta quando vejo um monte de rapazes e moças de vinte anos enchendo os braços, o peito e as costas com dragões chineses, galeões espanhóis ou guitarras heavy-metal. Fico pensando: “E daqui a 40, a 50 anos?” Eles não estão nem aí. O jeito é filosofar um pouco e achar que num mundo onde tudo é descartável, etc. e tal, os jovens se fascinam com a possibilidade de alguma coisa durar para sempre. Gostam das decisões irreversíveis. Sentem-se mais radicais, mais decisivos, mais importantes. Tatuar-se é um gesto que “tem atitude”.
Uma cena impressionante no filme O Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas, feito em Recife por Paulo Caldas e Marcelo Luna, é quando vemos o músico Garnizé fazendo-se tatuar um rosto de Che Guevara ao lado dos rostos já tatuados de Martin Luther King e Malcolm X, enquanto explica a importância desses heróis para a luta social do hip-hop pernambucano. A tela é coberta por uma superfície uniforme de pele morena, que a agulha elétrica corrói, injetando tinta por cima do esboço, recriando a imagem de Guevara com a boina e o cabelo ao vento. É uma cena que dá significado literal à expressão “sentir na própria pele”; e é um manifesto político capaz de fazer ruborizar um militante que se limita a botar na camisa um “button” do candidato. (Aliás, amiguinhos, é “button”, que se escreve; “bottom” quer dizer “bunda”.)
O gesto radical de tatuar para sempre a própria pele pode parecer exagerado a alguns. Mas se nossas mentes fossem tão visíveis quanto nossos corpos, veríamos que elas não passam de uma superfície riscada por milhões de cicatrizes, impressa com milhões de mensagens e comandos que vão muito mais fundo do que a tinta vai na epiderme. Tatuar-se é trazer para fora o que somos por dentro: um muro onde o Governo afixa placas e a vida cobre de grafittis.
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