(Anna Karina e Eddie Constantine em Alphaville)
A partir de Acossado (1959) ele fêz um desmonte da linguagem do cinema. Ao ver um filme seu pela primeira vez (acho que foi Masculino, Feminino), não entendi a história e principalmente a mensagem do filme. Naquele tempo, todo filme tinha que ter uma mensagem: uma idéia abstrata resumida em poucas frases e que, bem assimilada, nos dispensava até de ver o próprio filme.
No cinema de Godard havia uma profusão de pequenos “erros” de iluminação, de enquadramento, de mixagem sonora, de direção de atores... A todo instante, aparecia um errinho novo. Parecia que o sujeito estava dirigindo um filme pela primeira vez.
E só aos poucos (depois de Alphaville, O desprezo, Viver a vida...) fui percebendo que era justamente isso. Godard fazia cinema como se o cinema estivesse começando ali, e nos obrigava a vê-lo com os mesmos olhos.
Tenho amigos que sentem por Godard o mesmo que as viúvas do 11 de setembro sentem por Osama Bin Laden. O primeiro filme de Godard pulverizou em poucas horas tudo que eles tinham de mais precioso, tudo que tinham de mais inquestionável. Quando você começava a se emocionar, a se envolver com o filme... pluft! Vinha um daqueles errinhos e cortava o barato.
Godard era cria de Brecht, de Picasso, de Borges, de Barthes, dos grandes metalinguistas. Quando a história passada na tela começava a nos fazer sonhar, ele nos cutucava as costelas: “Acorda. É mentira. É linguagem. É só um filme.” E muita gente até hoje não o perdoa.
Em Tempo de Guerra, um cara vai pela primeira vez ao cinema, e no filme uma mulher se despe antes do banho. Quando ela começa a tirar o soutien, sai de quadro pelo lado esquerdo. Ele levanta-se da poltrona e vai andando para o lado oposto, atropelando os outros espectadores, tentando ver a mulher que saiu de quadro. A cena prossegue de maneira hilária, pela ingênua insistência do personagem em tentar olhar aquilo “como se fosse de verdade”.
Em O desprezo, Godard filma em cinemascope, mas mesmo assim a câmara se move de um lado para o outro num diálogo entre Michel Piccoli e Brigitte Bardot, quando o enquadramento convencional mandaria colocar os atores de perfil nas extremidades do quadro.
Em Alphaville, Eddie Constantine e Anna Karina tomam café juntos, de frente um para o outro. Os atores estão fora de quadro: tudo que vemos são suas mãos gesticulando, servindo-se, mexendo o café, etc.
Muita gente ainda lê isso como a arrogância insuportável de um super-intelectual francês querendo ser modernoso. Eu leio isso como o bom-humor tranquilo de um sujeito meio rebelde, que pergunta aos intelectuais:
“Por que assim, e não de outra forma? Por que do seu jeito, e não do meu? Por que aceitar o seu mundo, quando eu posso pelo menos imaginar um mundo diferente?”
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