No último fim de semana de junho, tive a alegria de
participar de um evento em homenagem a um dos maiores xilogravuristas vivos da
literatura de cordel. O pernambucano J. Borges, poeta e xilógrafo, recebeu uma
grande exposição retrospectiva de sua obra no Museu do Pontal (Rio de Janeiro),
ao mesmo tempo em que lhe foi entregue o título de Cidadão Carioca.
O Museu do Pontal, que tem uma das maiores coleções de
arte popular, reuniu um material riquíssimo da obra do artista de 88 anos, que
não pôde vir pessoalmente mas foi representado pelo seu filho Pablo.
Fiz parte
de uma mesa redonda com Pablo, Lucas Van de Beuque (Museu do Pontal) e Maria
Alice Amorim, autora do perfil biográfico J.
Borges – Entre Fábulas e Astúcia (Recife: CEPE, 2019). E conversamos com o
mestre, em tempo real, num telão, com mediação de Monique Gabrielle.
(Pablo Borges,
entre Lucas Van de Beuque e Ângela Mascelani, diretores do Museu do Pontal)
Conheço Borges há mais de quarenta anos, desde a época
efervescente dos festivais de cantadores pelo Nordeste afora. Como é de
conhecimento público, a Cantoria de Viola e a Literatura de Cordel (com seus
poetas e seus xilógrafos) são universos que se interseccionam, se misturam,
como duas famílias grandes que ocupam casas diferentes, mas vizinhas, num
terreno que pertence a ambas.
Uma característica importante da xilogravura no cordel é
que – me corrijam se eu estiver errado – é grande o número de poetas que
escrevem folhetos e acabam treinando a mão na gravura para poder
ilustrá-los. Número bem maior (acho eu) que o número de xilogravadores que se
tornam poetas. As circunstâncias da vida vão jogando os artistas de um trapézio
para outro, o que importa é não cair.
Eu estava com 21 anos. Primeiro comecei com o cordel e depois que eu
escrevi o primeiro cordel precisei ilustrar, mas não tinha quem ilustrasse.
(...) O clichê pra se fazer no Recife era muito dispendioso. Criei uma gravura,
lixei a madeira, imprimi, levei na gráfica, o rapaz fez uma cópia, disse: dá
para imprimir. Fiz a segunda, a terceira, e daí continuei até hoje. Há sessenta
anos que vivo disso. (p. 32)
O livro de Maria Alice Amorim é um registro precioso da
carreira desse artista que cumpriu todas as etapas da literatura de cordel.
Porque o cordelista não é alguém que escreve versos trancado numa torre de
marfim, ou, em sua versão mais moderna, no seu apartamento com ar condicionado,
longe da rua. (E olhe, não tenho nada contra quem escreve assim – eu mesmo sou
um.)
O cordelista é o Poeta
que escreve os versos. É o Editor que
se responsabiliza pela publicação, investe dinheiro, embolsa os lucros ou arca
com os prejuízos. É o Impressor, em
grande parte dos casos, com sua maquinazinha manual de tipos móveis, geralmente
num aposento nos fundos da casa, repleto de papel cortado, latas de tinta,
trapos sujos, pilhas de clichês de zinco ou gravuras de madeira. É o Distribuidor que marca encontros rápidos
e precisos com vendedores que vêm do interior, toma-lá-dá-cá, dinheiro vem,
pacotão de folhetos vai. E finalmente é o Vendedor,
parado numa calçada da feira, com uma lona ou um plástico estendido no chão,
quatro tijolos nas pontas, folhetos enfileiradinhos lado a lado, enquanto ele
canta, recita, faz presepadas, tira graça com o público, entrega o folheto e
passa o troco ao freguês.
Uma vez fui para Mandacaru. Até Domingo de Ramos. Eu tinha um serviço
de som, armei detrás da igreja e nesse tempo lá o fiscal da feira era um tal de
Zé Bento, também foi tocador de viola, estava velho, trabalhava na prefeitura
de Gravatá e era o fiscal da feira. E tinha um enteado dele que namorava a
minha irmã. E eu cheguei lá, como tinha muito conhecido, armei o negócio e
comecei cantando uns benditos, umas coisas. Juntei uma regência de mais de
duzentas pessoas. E vendi a todo mundo. Acabei a feira. (p. 99-100)
(J. Borges)
É claro que a divisão de trabalho surge, com o correr dos
anos e a expansão das atividades, e faz com que A ou B se especializem. Mas o
cordelista percorre toda a linha de produção. E fora da arte popular são poucos
os poetas e os artistas plásticos capazes de (ou dispostos a) imprimir com as
próprias mãos a própria obra e depois levá-la embaixo do braço para vender.
Uma vez, colaborando numa pesquisa sobre o "Gráfico Amador" (grupo de artistas gráficos recifenses da década de 1950, de que fizeram parte
Aloísio Magalhães, Ariano Suassuna e João Cabral) chamei a atividade deles de
“cordel de rico”, visto que se tratava de intelectuais jovens, de famílias
tradicionais, tentando pôr em prática esse ciclo de-A-a-Z da produção
editorial.
E usei a mesma expressão, em outro momento, para
qualificar (sempre elogiosamente) os “poetas marginais” dos anos 1970-80, com
seus livrinhos xerocados, vendidos de mão em mão nos bares do Baixo Leblon e
ambientes parecidos.
Borges é um dos melhores exemplos (ao lado de artistas
como Marcelo Soares, Stênio Diniz, Abraão Batista, Klévisson Viana, etc.) da
aliança entre xilogravura e poesia, fazendo a junção entre a simplicidade da
sextilha poética e a aparente rudeza da faca na madeira. Com esse minimalismo
técnico, eles obram milagres de criatividade.
A exposição organizada pelo Museu do Pontal (leia-se
Ângela Mascelani e Lucas Van de Beuque) reuniu mais de 200 obras do artista, e
dá uma visão da evolução de seus temas e de suas técnicas. Uma evolução
constante, de alguém que já cortava madeira e vendia gravuras antes mesmo de
conhecer a palavra do seu ofício. Ele conta como aprendeu as palavras
“xilogravura” e “xilógrafo”.
Um dia uma mulher do Rio de Janeiro olhou e disse quando eu vejo uma
xilogravura fico doida, não sei nem escolher. Eu peguei o nome, marquei num
papel, guardei no bolso. Quando ela saiu, fui num dicionário velho que tenho
aí, olhei xilogravura, achei. Xilogravura é gravura em madeira e quem
faz a xilogravura é o xilógrafo. Eu digo ah, menino, agora eu sei o que eu tô
fazendo. Veja, eu entrei na arte abrindo caminho a fogo. (p. 143)
Detalhes que sempre me recordam o testemunho de um poeta
popular (já vi a história atribuída a diferentes nomes) a quem um repórter
perguntou um dia: “O senhor estudou?” e ele respondeu: “Não, mas vem muita
gente de longe para me estudar”.
Pablo Borges recebeu em 29 de junho, em nome de seu pai,
o diploma de “Cidadão Honorário do Município do Rio de Janeiro”, num projeto
encabeçado pela vereadora Luciana Boiteux. Ao agradecer, no telão, seu pai lembrou as
dezenas de viagens ao Rio, e os meses em que ficava na casa de amigos, enquanto
vendia gravuras e percorria o périplo habitual dos nordestinos acariocados.
Criador de almanaques, quiromante... Não tem nada em que
o artista popular não se meta, na luta constante pela sobrevivência. Ler mão é
fácil!...
Aquilo não tem o que aprender, não. Aprendi a ler com Antonio Ferreira.
Quando ele ia para a feira e não vendia cordel, tirava da maleta um ganzá. Começava
a cantar coco e ganhava dinheiro. Levava o ganzá e se a feira não prestava para
o cordel, ele ia ler mão. Todo mundo ganhava dinheiro com isso. Perguntei ô
Antonio, e isso se aprende? Que aprende! É só dizer umas coisas com lógica. (p.
91)
2 comentários:
Eu já li a mão de uma tia: - Tu tem lavado muita louça!
Grande J Borges. Tenho aqui em casa "A passarada", "O monstro do sertão" e "Coração na mão", em tamanho grande.
- Braulio, fiz o seguinte comentário em um post mais antigo do blog (imagino que não os veja): Você falou o quando já se escreveu sobre Aruanda, mas fiquei pensando aqui no que ainda não se fala sobre o cinema paraibano. Recentemente ouvi um interessantíssimo episódio do podcast Radio Novelo, onde falaram sobre filmes paraibanos em super-8 redescobertos. Quais filmes/diretores/marcos do cinema paraibano você diria que deveriam ser mais vistos/estudados?
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