Eu vivo rastreando uma tendência nas narrativas modernas
– e não somente nelas, porque isto vem de mais longe, mas o acúmulo de exemplos
leva a gente a se concentrar em obras mais recentes, dos últimos cem anos.
(Digressão: quando alguém se refere aos últimos cem anos
como os tempos “mais recentes”, dá para perceber que vem problema por aí.)
Estou falando daquele enredo complexo, cheio de
surpresas, mistérios e reviravoltas, no qual tudo gira em torno de um livro,
que eu chamo O Livro Misterioso. Uma obra escrita cuja existência era duvidosa,
ou negada, ou insuspeitada, ou interrompida, ou impossível. E nesse Livro
Misterioso está cifrado, de certo modo, o destino humano nos tempos modernos.
É a Enciclopédia de
Tlon no conto famoso de Jorge Luís Borges, revelando um universo paralelo
que está prestes a invadir o nosso.
É O
Nome da Rosa de Umberto Eco com o seu volume desaparecido da “Poética” de
Aristóteles, o livro de filosofia que redime, resgata e vindica o humor.
É o Necronomicon de Abdul Alhazred,
inventado por H. P. Lovecraft, como uma espécie de evangelho do Mal.
É o
romance-rádio escrito por uma doida, no manuscrito inacabado de Julia Marquezim
Enone, que Osman Lins imaginou em A
Rainha dos Cárceres da Grécia.
Os exemplos são incontáveis, e vou parar de lembrá-los
aqui porque preciso subir um degrau, rumo ao estágio seguinte, que eu chamo O
Filme Misterioso.
Sendo o mundo o que é, este Filme Misterioso (que cumpre
funções extremamente semelhantes ao Livro) aparece como “McGuffin” (=pretexto
para uma narrativa melodramática com ação, mistério e suspense) tanto em livros
quanto em filmes. Podemos dizer que se trata de uma fase híbrida, uma fase
intermediária, uma fase em que o Objeto Transcendental (o Filme) tanto pode ser
evocado na nova linguagem (o Filme) quanto na antiga (o Livro).
Temos na literatura mais-ou-menos recente muitos exemplos
de Filmes Misteriosos que servem de Santo Graal para as pessoas mais variadas,
e nós conhecemos esses filmes através das vidas delas, das experiências delas,
e dos seus olhares.
Nem precisaríamos pisar no terreno da ficção, porque
existem na própria vida real exemplos de Filmes Misteriosos ou míticos. Filmes
que existem, mas que viraram lenda. Como o Limite
de Mário Peixoto, talvez o maior mito reconstituído do cinema brasileiro. Ou
como The Other Side of the Wind, de
Orson Welles, que passou décadas sendo remontado, restaurado, recomposto (sabe-se lá até que ponto) de acordo com o que seu criador tinha imaginado.
Mas na ficção a gente tem os Filmes Misteriosos. Que
muitas vezes não são um só: são uma obra inteira, como a obra estranha e
perturbadora de Max Castle, diretor de filmes B, no romance Flicker (1991) de Theodore Roszak. (Sim,
o mesmo autor de A Contracultura.) Filmes
em que estão ocultas mensagens subliminares destinadas a desestruturar o
subconsciente das platéias.
Algo muito parecido ocorre no livro de William Gibson Pattern Recognition (“Reconhecimento de
Padrões”, Ed. Aleph, São Paulo). Nesse futuro próximo, uma série de filmagens,
chamada “the Footage”, aparece meio aleatoriamente na Internet. Trechos de um
misterioso filme em preto-e-branco que ninguém sabe quem filmou, nem onde, nem
quando, nem por que motivo surge de maneira tão misteriosa, e arrasta atrás de
si um culto tão obsessivo.
No filme Zeroville,
de James Franco, um montador de filmes meio amalucado descobre, em todo filme
que assiste, um fotograma “fora do lugar”. Ele passa a furtar cópias, recortar
esses fotogramas, e tenta montar com
eles O Filme Misterioso.
E na TV cinema a gente tem The Grasshopper Lies Heavy, o conjunto de documentários em 16mm que
aparecem na série da Amazon Prime The Man
in the High Castle (Frank Spotnitz). No livro original de Philip K. Dick,
era um romance. Na série de TV, adequadamente, é um filme em 16mm, que em
termos de tecnologia atual é algo mais pré-histórico do que um livro.
Tudo isto parece reproduzir a nossa tendência a acreditar
que certas obras de arte parecem vir de outro mundo, parecem trazer em si
verdades transcendentais e nos abrir janelas conceituais para ver o mundo de
outra forma. (Não é uma má descrição do fenômeno artístico em geral.) Os Livros
Misteriosos e os Filmes Misteriosos nos hipnotizam, nos arrebatam, nos
transmitem uma sensação de que tudo é possível, de que vale a pena buscar mais
fundo, de que “a vida não é só isto que se vê, é muito mais”.
O fato de projetarmos esse portal de transcendência num
livro, e depois num filme, me leva a pensar: o que vem depois?
Provavelmente pensaremos num Videogame Misterioso, porque
o game está para o século 21 como o cinema esteve para o século 20. A mais
perfeita tradução da época em que surge.
Há precedentes como o eXistenZ de David Cronenberg, um
jogo onde é possível penetrar fisicamente, existir em-matéria no universo
representacional.
Já deve haver por aí uma lista razoável de Games
Misteriosos, e nem me refiro às sugestões mirabolantes de Peter Molyneux, via
Twitter (@pmolyneux). Um game onde a
realidade se deixa manipular de maneiras inesperadas, impossíveis, insólitas.
Um game com easter-eggs escondidos
sabe-se lá onde, revelando sabe-se lá o que. Um universo paralelo? Uma viagem
no tempo? Um pipôco, e o jogador vira pó?...
Ou talvez não seja um videogame, seja O Zap Misterioso,
um grupo de mensagens num hiper-aplicativo destinado a substituir WhatsApp,
Telegram e congêneres. Onde seja necessário fornecer certos dados. Onde seja
obrigatório baixar certos mecanismos capazes de... (não direi o quê: o mundo
não está preparado para tais revelações.) Mas que traga em si algo do livro, do
filme, essa aura de ser o modo preferencial de projeção de nossa fantasia em
busca de outros mundos, de outros universos; de hipóteses mais suportáveis do
que esta Realidade sem opções.
(Zeroville)
Um comentário:
Muito interessante. Videodrome fez o mesmo com a TV por satélite, The Ring com o VHS, e Juliette Nua e Crua com o cassete. A mídia se torna mística quando morre. Antes ela é senso comum, depois ela se torna um tesouro místico a ser recuperado.
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