("repangalejando")
Uma vez, em Campina Grande, a sessão do “Cinema de Arte”
exibiu o filme de François Truffaut, A
Noiva Estava De Preto. É a história de uma mulher misteriosa que vai
matando, de um em um, vários homens que não a conhecem, e não sabem por que
motivo estão sendo mortos.
Na sessão em que eu estava, o projecionista trocou um
rolo lá pelo meio do filme. Em vez do rolo número 4, por exemplo, ele passou o
rolo 5, deixou correr até o fim, e quando deu pelo erro, colocou o 4, o que só
fez piorar as coisas. O resultado é que surge uma cena anterior a um dos crimes,
e o personagem que tinha acabado de morrer aparece vivo de novo.
Silêncio sepulcral na platéia. Um cara atrás de mim falou
baixinho:
– Oxente, o caba não tinha morrido?
O amigo dele respondeu:
– Isso é cinema de arte, rapaz. O caba morre...
envivece...
O episódio é verdadeiro, e engraçado, pela situação e
pela reação do espectador. Ele tem, contudo, um aspecto que me faz rir em
dobro. É a palavra escolhida pelo cara para exprimir o que sentia diante
daquilo. A história não seria igualmente engraçada se ele tivesse dito: “Isso é
cinema de arte, rapaz. O caba morre... fica vivo de novo...”.
O humor se dá muitas vezes pela via de uma reação verbal
inusitada diante de um fato inusitado. Não só o humor. A poesia. A paixão. O
assombro. O deslumbramento da descoberta. O paroxismo do medo. A vertigem de
viver.
Tudo isso é capaz de provocar, em algumas pessoas, uma
reação de improviso verbal que vai às raias do improvável, dependendo de quem é
aquele indivíduo, de que vocabulário dispõe, que educação teve ou deixou de
ter, que recursos verbais costuma empregar em sua vida comum.
Lá vou eu de novo pagar direitos autorais a Guimarães
Rosa, em seu trecho exemplar de “São Marcos” (em Sagarana, 1946), o famoso episódio das palavras com “canto e
plumagem”, onde ele justifica tais improvisos:
...e, ao descobrir, no meio da mata, um angelim que atira para cima
cinquenta metros de tronco e fronde, quem não terá ímpeto de criar um vocativo
absurdo e bradá-lo – Ó colossalidade! – na direção da altura?
O povo, esse inventador da língua, costuma arrancar não
se de onde essas palavras imprevistas, para poder ficar pau-a-pau com o mundo,
quando este lhes propõe um imprevisto qualquer.
Não é de outra natureza a reação do menino lá do
interiorzão da França, que aos 7 ou 8 anos foi levado pelo pai à cidade, pela
primeira vez, e a cidade perto da fazendinha deles era algo como Reims ou
Chartres, onde avulta uma daquelas catedrais góticas capazes de deixar Stendhal
estendido no chão, de mero assombro.
O guri foi, e voltou com o pai. A mãe e a avó lhe
perguntaram se gostou de conhecer a cidade, ele disse que sim, e aí
perguntaram-lhe o que ele achou da catedral. Ele hesitou alguns instante, e
então deu um salto no meio da sala, plantou uma bananeira, e ali ficou,
equilibrando-se, em resposta.
Quando o mundo nos propõe alguma experiência
buleversadora-de-conceitos, temos o impulso verbal, o impulso vital de
responder à altura, e é nesses instantes que alguém se descobre poeta.
Não se deve confundir esse impulso com o impulso do
escritor erudito que fica durante horas folheando dicionários e Thesaurus em
busca de uma palavra rara, sofisticada, expressiva. “Ó, minha amada, os teus olhos tão miríficos...” Não senhor. Só vale se for de improviso,
se a pesquisa durar um segundo, um batimento cardíaco, um piscar de olhos. Tem
que ser uma busca instantânea por um glossário guardado na memória inconsciente
para uma ocasião especial – que é agora.
Ainda circula nas redes sociais um vídeo feito em algum
lugar do Brasil onde se mostra um céu noturno, tempestuoso, com chuva forte e
raios, e de repente um menino grita: “Eita,
mãe! Olha só como tá repangalejando!...”
É um neologismo maravilhoso, porque nota-se que o garoto
misturou, no seu deslumbramento, duas palavras que ele já tinha escutado,
“relampejando” e “relampagueando”, e acabou fundindo as duas na vertigem do
momento. Está certo! É exatamente para isso que serve a língua. Para estar à
altura de momentos únicos em nossa vida.
Os poetas de verdade são sensíveis a essa necessidade de
“estourar a costura” do idioma quando é preciso dizer algo que a linguagem
comum não comporta. Carlos Drummond, em seu poema satírico “Ao Deus Kom Unik
Assão” (em As Impurezas do Branco),
diz:
Eis-me prostrado a vossos peses,
que sendo tantos todo plural é pouco...
De fato, “pés”, apenas, é um plural muito mixuruca diante
dessa potestade multípede (quadrúpede, diriam as más línguas).
4 comentários:
Curti muito seu texto. Veja só como veio a me "desencalhar": ontem cometi "ignoganância" ao tentar explicar minha visão da pandemia. Não sei se é original. Para mim, foi. Nem vou perguntar ao Google.
Previsão do tempo: está repangalejando no habistrato !
Bráulio, que maravilha este seu blog - estou cada dia mais seu fã.
Fãnpelejando gargalhei unicórdico de êxtases, quase morta de vergonha, reabri MF retorcidoriso.Se tempo, minha LAB-PE: youtube canal weracy costa 'é ou não é?'
Postar um comentário