(foto: saite Catraca Livre)
Escrevi aqui, alguns dias atrás, sobre a chamada “poesia
marginal”, movimento que no meu entender trouxe uma influência altamente
positiva para as nossas letras.
No que me diz respeito como leitor e autor, a poesia
marginal trouxe leveza, coloquialismo, humor e irreverência jovem para a
poesia, no campo da temática. No campo da técnica, trouxe a fala das ruas para
a página impressa, e devia haver um Prêmio Nobel de Literatura de 5 em 5 anos
para quem pratica essa façanha, tão difícil quanto levar a Pirâmide de Quéops
do Cairo para Paris.
Dito isto, parece até que sou partidário da extinção de elementos
como métrica, rima, estrofe, forma fixa. Nada disso.
O verso livre (sem métrica obrigatória) e o verso branco
(sem rima) não vieram para substituir os outros, e sim para serem opções a
mais. Uma nova forma de escrever, quando
surge, não pretende extinguir as formas anteriores; e, aliás, não
consegue. São as formas que se extinguem
a si próprias, quando deixam de ser úteis para quem escreve. Rima e métrica (acho eu) continuam tão úteis
hoje quanto eram há 200 anos ou dois mil anos.
Minha formação pessoal em matéria de poesia são duas
escolas extremamente rígidas e exigentes: o Soneto e o Cordel. Perto dessas
duas, a poesia aparentemente rigorosa de João Cabral de Melo Neto (por exemplo)
é um carnaval de descontração. Daí que quando a “poesia marginal” pipocou por
todos os lados, recuperando certas atitudes e certos processos verbais do Modernismo
de 1922, isso foi uma água de coco na boca de quem, como eu, estava acostumado
ao café-espresso da forma fixa.
Rima e métrica funcionam como algo que não tem (ao que eu
saiba) uma palavra específica em português, mas que podemos definir como
“restrições voluntárias” ou “regras arbitrárias auto-impostas”. Em francês há o termo “contrainte” (pronuncia-se “contrant”) e em inglês o equivalente “constraint” (“constréint”).
Para que serve isto?
Bem, muitas vezes um excesso de liberdade desorienta o artista
(principalmente o iniciante), e algum tipo de restrição o ajuda a focalizar sua
imaginação. A aparente dificuldade ajuda o poeta (o artista em geral) a concentrar
qualidades que um excesso de conforto deixaria dispersas.
É isto que acontece quando estabelecemos que todas as
linhas pares de um poema têm que terminar com os mesmos sons. Ou que cada verso tem que ter um número fixo
de sílabas. Ou que todas as estrofes tem
que ter o mesmo número de linhas, arrumadas da mesma maneira. O poeta principiante, que pensa somente nas
próprias emoções e nas próprias idéias, acha que isto é algo feito para
prejudicar sua auto-expressão. Mas não é.
A luta do poeta com essas restrições auto-impostas é como
a luta de um atleta com o levantamento de pesos numa academia: pra que fazer
todo esse esforço, que não serve para nada?
A resposta é: serve para desenvolver os músculos do atleta. Quando falamos
de poesia (e suas restrições: rima, métrica, etc.) esse esforço que parece
desnecessário é para tornar o poeta mais hábil.
Fazê-lo explorar os limites do seu vocabulário – e do seu bom-senso,
porque não basta encontrar uma palavra que rime com outra, é preciso que esta
palavra dê a impressão de que entrou ali pelo seu sentido, e não pelo seu
som.
Do mesmo modo, o esforço para encaixar as idéias num
metro, num ritmo, numa cadência, faz com que o poeta apure seu senso de ritmo,
sua percepção de sutilezas. Ele se torna
capaz de produzir uma poesia mais leve, mais flexível, mais fluente, que não dê
aquela impressão que nos dão os poemas mal feitos: a de uma coisa involuntariamente
desconjuntada, sem jeito, cheia de solavancos.
Num livro fundamental sobre tradução literária e
linguagem, Le Ton Beau de Marot (Basic
Books, 1997), Douglas R. Hofstadter diz:
“Se você seleciona com habilidade o material de que vai
precisar a fim de satisfazer as regras e restrições que você se impôs, vai dar
a impressão de que está controlando o seu meio de expressão, em vez de estar
sendo controlado por ele. É um pouco o
que ocorre com as grandes patinadoras no gelo.
A patinadora se identifica a tal ponto com as restrições e
impossibilidades no seu trabalho que na hora da apresentação os seus movimentos
dão a idéia de que ela está mostrando ao gelo ‘quem é que manda ali’ – quando
na verdade sabemos que é o contrário. A
verdade é que, ao longo dos anos, quem manda ali é o gelo, até que o gelo a
treinou tão bem que ela agora sabe o que deve evitar, e sabe o que fazer a fim
de dar a uma platéia de pessoas leigas a impressão de que ela ‘faz ali o que
bem entende’. É preciso um longo
aprendizado, dentro de um conjunto de regras e restrições, para que possa vir a
ocorrer essa aparente inversão de comando”.
O poeta Tom Lehrer disse a Hofstadter: “Parece aos outros
uma grande habilidade do poeta, mas ele apenas foi forçado a regiões
inesperadas do espaço semântico (ou seja, o espaço de todas as idéias
possíveis) por causa da rima, que é uma restrição auto-imposta”. Em outras palavras, Lehrer diz que acaba
pensando em imagens que jamais lhe ocorreriam se ele não tivesse a obrigação de
rimar as linhas umas com as outras.
Robert McKee, em seu manual Story – Substância,
estrutura, estilo e os princípios da escrita de roteiro (Arte e Letra, 2006), diz o mesmo das
aparentes limitações dos gêneros cinematográficos, e escolhe a poesia para dar
um bom exemplo:
“Robert Frost disse que escrever verso livre é como jogar
tênis sem a rede, porque quem mais estimula a imaginação são as convenções
poéticas, que não passam de restrições artificiais e auto-impostas. Digamos que um poeta decide escrever estrofes
de seis linhas, rimando as linhas pares.
Depois de escrever a quarta linha, que já rimou com a segunda, ele se vê
meio encurralado. Precisa rimar a sexta
linha com a segunda e a quarta, e o esforço para fazer isto talvez o inspire a
imaginar uma palavra que não tem qualquer relação com o seu poema – ela apenas
rima – mas essa palavra aleatória acaba gerando uma frase que produz uma imagem
mental vívida, uma imagem que repercute nas cinco linhas anteriores, produzindo
um novo significado, um novo sentimento, mudando o rumo do poema e lhe trazendo
mais sentido, mais emoção. Graças a essa
limitação auto-imposta, o poema acaba alcançando uma intensidade que nunca
teria atingido se ele pudesse usar qualquer palavra que lhe conviesse. (...) O princípio da Limitação Criativa
produz liberdade dentro de um círculo de obstáculos”.
Cada poeta recomeça a poesia do Grau Zero. Cada poeta tem
pelo menos uns cinco mil anos de experiências alheias para usar como lhe der na
telha. Se ele não gosta de linguagem descontraída e de poemas-piadas, tudo bem,
ninguém o está obrigando a escrever assim. Se não gosta de odes pindáricas ou
de epigramas, tudo bem, não precisa escrever. Eu não escrevo sextilhas por que
alguém me obriga, e sim porque acho a forma bonita, domino meia dúzia de
truques relativos a ela, e ela me serve muitíssimo bem para produzir pequenos
impactos poéticos no leitor.
O poema é seu. A regra é sua, a ausência de regras (se é
disso que você gosta) também. A tradição existe como música inspiradora, não
como obrigação. (A “poesia marginal” também já é uma tradição, entre tantas
outras.)
Um comentário:
Concordo plenamente. Pessoalmente me “encaixo” nas duas situações. É mesmo gostando dos versos brancos, sinto também que é quase como jogar tênis sem a rede. Apesar de nunca ter jogado tênis. A forma previamente definida obriga a trabalhar mais, ampliar o repertório vocabular e das ideias. É o que penso.
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