Eu estava lendo um saite literário, com advertências e
conselhos. Num certo post, o autor dizia algo assim: “Na ficção, o personagem é
essencial. Ele tem que ter espessura, credibilidade. Se o personagem não parece
uma pessoa – dentro das limitações de um texto, claro – a história não se
sustenta”. O primeiro comentário do saite dizia: “Falso. E os personagens de
Kafka, de Beckett? Que espessura eles têm? Parecem com quem? Isso que você fala
é um absurdo.” A crítica do leitor tem uma certa razão, porque os personagens
de Kafka e Beckett têm tudo menos essa “espessura” realista que o autor do
saite reivindicava. Mas o que ele diz exprime, sim, uma verdade. Só que uma
verdade parcial. E é sobre isto, não sobre literatura, que quero falar.
A mente de muitas pessoas funciona de modo binário, preto ou
branco, sim ou não, 100% ou 0%. Acho que na infância elas assimilaram o
conceito de “verdade” e “mentira”, e daí em diante se fixaram na atitude mental
de considerar que qualquer afirmativa ou é cem por cento verdadeira ou cem por
cento falsa. Eu chamaria a isso A Crispação Aristotélica – me parece que foi
Aristóteles quem estabeleceu o conceito de que “se A é A, então A não é B”...
algo assim.
Na discussão acima, a afirmação sobre a necessidade de
verossimilhança dos personagens literários é uma verdade. Não no sentido científico
de uma verdade factual, que pode ser objetivamente comprovada quantas vezes for
preciso, mas no sentido de uma “verdade cultural”, de um conceito que faz parte
da nossa cultura literária. É uma verdade parcial (digamos), que convive com a
verdade parcial oposta. Anna Karenina e Joseph K podem coexistir no mesmo
universo cultural. São verdades opostas, mas verdadeiras.
A imensa maioria das generalizações que a gente diz são
verdades parciais. E a toda hora aparece um Leitor Binário, um Crispado Aristotélico
para dizer que nossa afirmação é falsa, porque ele acaba de descobrir algumas
exceções a ela. Qualquer afirmação vaga como, digamos, “os brasileiros gostam
de futebol” é imediatamente denunciada, porque (dizem eles, triunfantes) nem
todo brasileiro gosta de futebol. Ora, “os brasileiros” não significa (e é isso
que ele não entende) “todos os brasileiros”. Significa “um número significativo
de brasileiros”. É uma verdade estatística, cinzenta, difusa, como as da Física
Subatômica.
6 comentários:
Muito interesante!Há gente no mundo que ainda não assimilou a lei da relatividade que é uma lei muito importante mesmo!
É um tema envolvente para quem gosta dos problemas do conhecimento x linguagem. Em análise de mérito do conteúdo, não há de se mitigar o valor daqueles que interpretam de chofre as seguintes possibilidades sobre: "Os brasileiros..." Os indivíduos “A” entendem como se fossem todos os brasileiros. O “B” entende como se fossem alguns ou a maioria ou até a minoria. Não resta maior razão nem a “A” nem a “B” e sim na delimitação do espaço amostral do escritor do texto a ser interpretado. Quem escreve, não escreve para si. E nem deve alimentar ainda que implicitamente, o teor ditatorial de que todos que lerem devem estar interpretando o mundo como ele. No Direito costumamos dizer que não existem letras mortas, e se esta se encontra em algum lugar, ela tem seu significado e é parte substancial do todo. Assim a existência dos termos ( “ “na maioria dos casos”, “quase sempre”, “cerca de”, “aproximadamente”, “em torno de”, “grande parte” “..) delimitadores do espaço amostral, estarão presentes, na esfera expositiva do bom cientista das letras. Nas ciências da natureza, que são expressas pela linguagem matemática, não ocorrem desvirtuações interpretativas, a ponto de ensejar uma rotulação ao leitor . Binário ou Extensivo. O declarador de códigos informativos não coloca o sinal de + ou – numa operação matemática onde não enseja a possibilidade de se encontrar dois valores plausíveis ele sempre coloca “é” que em matemática denota-se com sinal de igual ( = ). E nem por isso, rotulamos o escritor matemático de raciocínio binário, tão pouco o leitor. Assim concluímos que o escritor que é um mau escritor. Ou ele delimita o universo válido para suas premissas com os termos retro mencionados extraídos do texto base, ou ele está impondo as matizes ditatoriais para que cada um que o leia , interprete o mundo como ele.
Obs: Desculpe o conhecimento exíguo, no manejo da informática, pois quando eu vi as várias possibilidades de como publicar, não entendi muito bem quais operações deveriam ser feitas, por isso, simplificando as operações coloquei anonimo. Mas aqui vai a identificação embora as enviarei novamente como anonimo rsrsrs.
João Luiz Marcelino
e-mail luiztabby@uol.com.br
twitter: @profquiroga
Em estudos lógicos, afirmar que "os brasileiros.." é diferente de afirmar que "a maioria dos brasileiros..". Depende do grau de exatidão que se busca na compreensão do texto como está expresso literalmente, e na interpretação do que está autorizado de forma implícita. Depende da fonte. Há textos técnicos que exigem afirmações mais exatas. Dados estatísticos governamentais, por exemplo, não se pode interpretar como bem entender, ou como convém.
Todo texto propõe, desde suas primeiras frases, e desde o contexto em que aparece (um blog ou um manual técnico?) uma espécie de "pacto interpretativo" que o leitor mais experiente precisa aceitar (ou não - nesse caso, vá ler outra coisa). Meu artigo se refere ao exemplo no primeiro parágrafo, e ao tom enunciativo que em geral ("em geral") se usa em crônicas de jornal ou em blogs. Claro que num livro científico, num ato legislativo, num manual técnico, etc. é necessário ir ao máximo de nitidez e exatidão possível no tema.
O leitor binário (gostei da invençâo) é, talvez, um ansioso. Ansiedade talvez não combine com o ato de ler, que é feito de alguma paciência e de muita boa vontade. Nada a propósito, mas não resisto: escritor, você ainda nos deve mais de Jean le Baladier. Abraço.
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