Estávamos conversando num grupo de amigos e eu falei:
“Drummond diz que mais vasto do que o mundo é o nosso coração”. Um dos
presentes corrigiu: “Na verdade ele não ‘diz’ isso. Ele ‘disse’ – no passado,
porque Drummond já morreu”. Deixei
passar porque o assunto principal era diferente, e parar para discutir este
detalhe iria atrapalhar nosso rastreamento da outra idéia. Mas essa interferência ficou cavucando no meu
juízo. Por que motivo eu tenho que me
referir a um escritor no passado, somente porque ele já morreu? Porque (não sei se é assim com os outros, mas
comigo é) eu faço uma distinção muito clara, na minha mente, entre aquele
senhor careca e de óculos chamado Carlos Drummond de Andrade, que nasceu em
Itabira e morreu no Rio, e o poeta Drummond, uma entidade metafísica que nasceu
e brotou dentro daquele cidadão, produziu grandes livros de poesia, e que
continua atuando, no momento presente, cada vez que alguém relê algum daqueles
livros ou simplesmente pensa num dos seus versos.
Fala-se que a literatura é uma forma de imortalidade, e eu
creio tanto nesta idéia que a estendo por conta própria a toda a palavra
escrita ou falada. A palavra é uma enunciação que, uma vez preservada (através
da escrita, da imagem filmada, etc.), é capaz de ser re-enunciada infinitas
vezes. O ato de escrever e o ato de falar se enovelam sobre si mesmos,
reiterando-se num processo sem fim. Quando leio uma frase de Drummond, a
enunciação de Drummond está ali, intacta, sendo reativada pelos olhos do
milionésimo leitor. Se leio uma carta escrita por meu pai e minha mãe, o
momento da escrita, com tudo que ele continha (ou com a parte que a escrita
conseguiu preservar), volta a acontecer diante dos meus olhos. Se vejo no
YouTube uma entrevista de Fellini ou de Lennon, aquela palavra não é passada, é
presente, é um passado instantaneamente conversível em presente vivo, pelo
poder combinado da fala e da audição, ou da escrita e da leitura.
Um comentário:
Perfeito, Braulio. Costumo dizer que Billy Wilder é genial, pq, dizer que foi genial só pra ajustar o verbo ao seu desaparecimento, parece induzir que deixou de ser genial - o que jamais acontecerá, basta rever alguns filmes do diretor. Raciocínio que vale pra qualquer artista, inclusive quando queremos referir suas limitações. Ex: mesmo após a morte do autor de Maribondos de Fogo poderemos manter o verbo: como José Sarney é burro!
Postar um comentário