“Este manifesto é escrito em
nome de Istvar Morisev, tecelão de ofício, aldeão de nascimento, alfabetizado
aos 71 anos, famoso por seu livro de memórias aos 75, rico aos 80, morto e
reconciliado com o mundo aos 90.
Em nome da luz do verde das
encostas de Krashnavik na derradeira tarde do seu tempo de paz, quando um
regimento inteiro de ‘kalliks’ em retirada devastou o vale, ateando fogo às
cabanas depois de saqueá-las e martirizar seus moradores.
Em nome da bacia de porcelana em
que uma criança era banhada quando foi atropelada por um corcel de guerra
pesando trezentas libras e coberto de armadura em couro, bacia que escapou
milagrosamente intacta a esse perigo, tendo a criança, por outro lado, não
resistido.
Em nome do oficial que deteve o
sabre que se erguia sobre o pescoço curvado daquele homem de bigode negro que
tinha sido dado como morto por entre as ruínas fumegantes de sua casa, e mandou
acorrentá-lo.
Em nome dos vizinhos de Morisev
a quem coube sepultar sua família e guardar como relíquia a bacia de porcelana
que pertencera aos seus avós.
Em nome das marretas de ferro
com que ele foi obrigado a quebrar pedras durante anos, longe do vale de
Krashnavik, crendo que cada dia seria o seu último.
Em nome da chuva que o
refrescou, do sol que o aqueceu, da comida insípida que o manteve vivo, das
mulheres que nunca teve, do sono que o trazia de volta à existência, das trinta
e oito voltas que o mundo deu em torno do sol e que um dia lhe trouxeram a
liberdade.
Em nome do sargento subornado que
uma madrugada o libertou às escondidas, dando-lhe sem explicações um cavalo,
uma sacola de mantimentos e um papel com um nome e um endereço.
Em nome de Olenka, a professora
de álgebra que, depois de anos de busca, assim o libertou e o acolheu em sua
casa num subúrbio de Varna, e nos anos seguintes tornou-se sua filha adotiva,
mestra e secretária.
Em nome do artesão anônimo que
gravou a história da família Morisev na bacia de porcelana que Olenka comprara
num antiquário, e cujas inscrições releu para ele, ao longo de muitas noites,
fazendo-o chorar pela perda do filho e pela salvação da história.
Em nome dos dias de estudo e das
noites em claro à luz de lâmpadas fracas, desenhando letras negras em papel
branco e repetindo palavras em voz alta.
Em nome do livro em que contou
sua história, a dos seus antepassados, e imaginou, descreveu e celebrou as
muitas vidas que poderiam ter sido do seu filho atropelado pelos cavalos dos
“kalliks”.
Em nome da arte da palavra, que
não muda o mundo mas lhe dá feição e sentido, e é capaz de modificar o passado,
eternizar o presente e multiplicar o futuro.”
Um comentário:
Gostei muito do texto. É de sua autoria? Abraços e parabéns pelo blog!
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